AFRO DE ZÍACO
Oz

"Mesmo que eu chamasse pelo Senhor
e ele porventura me respondesse,
não creio que me daria ouvidos.
Ele me esmagaria com uma tempestade
e sem motivo multiplicaria minhas feridas"

(Jó, cap. 9, v. 16 e 17)

O menino Jó se separou um pouco de sua turma e foi até o outro lado da rua. Viu que havia lá um cão agonizando, já em estertores de morte.

"Está com fome?" Perguntou Jó.

"Não. Apenas faço um teste", respondeu o cão.

"Que teste?"

"Quero descobrir a medida exata da vida."

"Parece que você tem problemas. Qual é seu nome?"

"Não tenho. Só sei que nasci em Zíaco."

"Não conheço. Onde fica?"

"Apenas os cães conhecem. É linguagem própria. O que está fazendo?"

"Vou te dar minha comida, posso?"

Jó enfiou a mão dentro de sua blusa já carcomida, à altura do peito e, afastando um pouco o saquinho de cola de sapateiro que guardava ali, puxou todo seu almoço, pão com churrasco que conseguira com o cara do rodízio.

"Aqui está."

"Obrigado. Vejo que a medida da vida é maior do que pensei."

"Quer ser meu amigo?"

"O melhor que você poderá ter."

"Vou te dar um nome, posso?"

"Pode. Mas será que pode ser alguma coisa relacionada com minha cor preta?"

"Tudo bem. Vou te chamar de Afro. Afro de Zíaco. Meu amigo."

"É. Gostei. E como é seu nome?"

"Não sei. As pessoas me chamam de Jó. Dizem que é por causa das minhas feridas, vê? Estão espalhadas em toda parte do meu corpo. Não sei o que isso tem a ver com o nome Jó, mas gosto."

"Um dia você vai saber."

Tornaram-se realmente amigos. Às vezes Jó tinha uns espasmos fortíssimos e caía e rolava e desmaiava na calçada da Catedral Sé. Nessa hora o amigo Afro se postava ao seu lado e o protegia. Protegia-o não das pessoas, que nem aí estavam. Protegia-o dos grandes cães brancos.

Os cães brancos tinham forma de gente e eram enviados do Paraíso. Vinham com a intenção de levar o desacordado Jó. Muitas vezes ficavam por perto durante algum tempo, em silêncio, mas daí a pouco se iam. Porém, nunca se afastavam muito.

"Jó, você já ouviu falar no paraíso?"

"Já. Mas não sei o que acontece lá."

"Nada de sublime. Se você é um leproso aqui, lá nada vai mudar. A hierarquia dos anjos nunca muda. Os ocupantes do trono são sempre os mesmos. Inalcançáveis, sempre exigirão que você lhes preste as devidas reverências. Não vale a pena. Preste atenção! Só se chega ao verdadeiro paraíso pela travessia do fogo. Só o fogo é capaz de lhe curar as chagas do corpo. Só o fogo é capaz de lhe renovar a alma."

"Por que você diz isso?"

"Na hora você saberá. Está com medo?"

"Acho que não."

Não passou muito tempo e Jó outra vez se viu atirado à calçada, convulso. Não passou muito tempo e outra vez os grandes cães brancos retornaram, sequiosos.

Decididos que estavam a levar a alma do pequeno desprotegido, iniciaram violento embate com o protetor Afro de Zíaco. Não lograram êxito. Afro teve suas carnes rasgadas, um dos olhos vazado, alguns ossos quebrados. Lutou o bom combate. Afugentou os impostores. Lançou sua ira contra a imensa Catedral que lhe fazia sombra.

De súbito a casa santa se iluminou em chamas. Suas paredes, seus pilares, sua abóbada, começaram a ruir.

"Que houve aqui? Quem te machucou, Afro? E esse fogo?"

"Esse fogo é o teste. Seu teste. Você está preparado."

"Preparado pra quê?"

"Pra descobrir a extensão infinita da verdadeira vida."

Afro de Zíaco se arrastou pelas escadarias e se atirou serenamente ao fogo.

"Eu sou o caminho."

Foram suas últimas palavras.

Jó, meio fora de si, observou o caminho de sangue que Afro de Zíaco deixou para trás. Levantou-se e caminhou sobre aquela trajetória. Pouco antes de realizar sua prova de fogo, ainda em frente ao grande portal, olhou uma última vez para trás.

Alguns cães brancos velavam um corpo de criança.

Abandonada na calçada.

Morta.

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