CONCORDÂNCIA
Nato Borges

Por se achar pouco, ele acreditava que tinha que ser mais. Por ser de fato pobre, achou de fazer mais em tudo que pôs a mão. Mas não fez sozinho. Tinha dias que sentava na sala e puxava da memória o caminho, cada pedra, cada dia e cada gota de suor.

Um dia lembrou da escola e do pai. Não tinha dinheiro, mas orgulho sobrava. Cismou de por o filho em colégio rico, para aprender do bom e conviver com o melhor. Teve até amigos, poucos, mas teve. Não os via nas férias. Ou estavam na praia ou no campo, dependendo da posição do sol. Tinha pontas de inveja e até suspiros de revolta.

- Não perca tempo. Aproveita a escola, que um dia você também vai seguir o sol. 

Era o que todo mundo lhe dizia, e ele acreditava. Sua crença o levava em frente. Cresceu e, já sem o pai, trazia na memória seu caminho. De dia trabalhava e, à noite, faculdade. Ali já conseguia ir à praia, mas os suspiros de inveja e as pontas de revolta continuavam, agora pelos que não tinham que trabalhar e aproveitavam durante o dia tudo o que ele sonhava à noite.

- Trabalha. Trabalha que um dia você vai descansar também.

Todo mundo lhe dizia isso. Ele acreditava e continuava. Adulto e com diploma, já tinha as noites livres. Mas a lembrança do pai o enchia de objetivos, mais trabalho e, com eles, mais e mais carnês, prestações e dívidas. Ali ansiava a tranqüilidade e a paz dos que conviviam com ele. A despreocupação lhe causava inveja, e por vezes até revoltava-se com isso.

- Continua. Um dia as contas acabam e você vai viver tranqüilo. É tudo investimento.

De novo dava razão a todo mundo. Estavam certos. Ele estava certo e o seu caminho não poderia ser mais correto. Acreditava e continuava. De fato os carnês começaram a rarear, aos poucos alcançava a tal tranqüilidade, mas as pequenas frivolidades lhe davam rasgos de inveja e, porque não, revolta. Seu carro não era o mais novo, sua casa não era a maior, suas roupas não eram as mais bonitas, nem sua mulher a mais feliz.

- Mas seu filho, seu filho é lindo. É nele que você tem que pensar.

Era verdade. Todos sabiam que seu filho era um tesouro, seu tesouro. Era nele que acreditava e investia seus esforços. Ele teria a melhor escola. Talvez não pudesse pagar sua faculdade, mas com uma boa escola ele poderia se sobressair, conseguir um emprego razoável e pagar a própria faculdade. Era isso. Por vezes sentia alguma revolta pelos filhos dos outros, que podiam ter o que ele não dava ao seu. Mas o filho saberia o que fazer da vida.

Sabia que o tempo tinha passado e tinha dias que se perdia naquelas lembranças. Fazia balanços e tentava acreditar que tinha valido a pena. Tentava, tentava, refazia as contas e insistia consigo mesmo. Um dia cansou de lembrar.

- Perda de tempo. Tudo uma merda. Joguei minha vida fora.

E todo mundo concordou com ele.

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