HABILITAÇÃO
Luciana Priosta

Como me deixei arrastar até aquele vexatório? As crianças, pestes do inferno, perdão Senhor, não paravam de gritar, os macacos! A frente da perua irremediavelmente destruída... Como iria explicar? Estava começando a minha desgraça, um dia ela viria, sabia, pobre e miserável pecadora que sou. Tenho habilitação sim senhora, foi o que eu disse. Com um simples "sim senhora" não podia imaginar que pudesse provocar tamanho estrago. Só omiti o fato de nunca mais ter pego no volante depois da auto-escola em 63. Ou teria sido em 65? Omissão é pecado? Me diga? Não, no que diz respeito a mentira estou salva. Nunca minto, nunca! E a omissão é até piedosa em casos em que possa se causar grande sofrimento pela verdade. Sabe o pão daquela mãe daquele menino? Aquela que anda por aí com aquele batom vermelho, indecente? É intragável. O pão, pois que batom eu nunca experimentei. Mas pelas graças dos céus jamais lhe disse isso!

Por que cada guarda de trânsito desta cidade faz treinamento com as cinco legiões de satanás? Cada um dá uma informação diferente, e aposto que estão todos de conluio uns com os outros! Estes sim, grandes mentirosos, não têm muita salvação, piedade deles Senhor. Só lembro dos macaquinhos gritando em coro: mão única tia, a senhora vai foder com a gente! Desculpe a palavra feia mas foi assim mesmo que disseram: tia, hunf! Não tenho sobrinhos daquele tamanho. Ah, desculpe, a outra palavra. É que fico doente quando me chamam de tia, tenho gana de estrangulá-los! Se ao menos os macacos ficassem quietos poderia ter parado para consultar o manual de placas de trânsito. Anos de "noite da pizza", para comprar aquela abençoada perua. Segundos para destruí-la. E pizza me dá uma azia tremenda! Fico dias com aquele mau estar, como se tivesse engolido cinco litros de ácido e não cinco discos de pizza. E não é gula, Deus sabe! Os disco de pizza iriam para o lixo, tinham caído no chão. É pecado jogar comida no lixo.

O que podia fazer com aqueles pequenos diabinhos? Todos revoltos dentro da perua destruída, guinchavam e pulavam sem parar! Era a visão do inferno, Jesus, Maria, José! Mas precisava acalmá-los. Água com açúcar? Estriquinina? Onde é que vende? Se deixasse que saíssem da perua iriam se dispersar como papel picado em salão de baile de carnaval, impossível juntar de novo. Não que já tivesse ido a um desses bailes, Deus me perdoe, mas ouvira falar. Sabe, tem gente que vai até nua nestes bailes, Senhor, onde já se viu! Tinha até visto uma vez na televisão que os homens agarravam todas as mulheres que viam, sem nem perguntar o nome! Ui! Tem algum vento encanado aí? Acho que deveria ter aproveitado o ensejo e queimado todos dentro da perua. Rá, rá, rá! Como sou má! Vê-los fritando devagarinho. Pensando bem, iam até gostar, os diabinhos. E piedade estava longe de meus pensamentos, que Deus me fulmine! Mas uma alma caridosa veio em meu socorro, ou dos diabinhos, sabe-se lá, e ofereceu a garagem para empilhá-los até que tudo estivesse resolvido. 

Da delegacia telefonei para cá. Dei a notícia assim de uma vez: teremos que rifar a criançada por que só pizza não vai pagar o prejuízo. Não podia imaginar que o pobre coração da nossa madre fosse tão fraco. E as crianças? Ela urrava. Por que não perguntou por mim? O tanto que estava sofrendo com o remorso por omitir o fato da habilitação? Eu sofria, sim, ó Jesus, pequei pela bondade, pelo desejo de servir a Sua obra, pois que vivo somente para isso! Os capetinhas estavam todos bem trancadinhos na garagem da senhora caridosa, que Deus receba sua alma, pois naquela altura já devia ter espiado todos os seus pecados. Claro que não os tranquei lá, modo de dizer. Apenas pedi que passassem a corrente no portão. Tenho boa alma, sou irmã de caridade!, jamais faria isso com aquelas encantadoras crianças. E na delegacia então? Os insultos que suportei. Velha doida e freira maluca foram os nomes mais bonitos que ouvi. Ora se uma pessoa passa a vida todo construindo a obra do Senhor, consagra toda sua vida a isso!, só para que aqueles veados, perdão!, senhores, não tenham que recolher tantos capetinhas ao reformatório tem que ouvir aqueles desaforos!

Assim que chegou o motorista do internato, fomos buscar as criancinhas. Oh, Senhor! Não canso de te louvar pela existência desses serezinhos tão doces! Claro que os pequenos demônios já haviam dado um jeito de escapar de lá. A pobre senhora desfalecida, que alma pura! Estava apenas de calcinha e sutiã vermelhos. Havia sido atacada por um homem, como poderia socorrer os pobrezinhos? Desesperada, mais por ter que dar conta às mães do paradeiro dos seus pequenos demônios do que pelo destino que tivessem realmente tomado, não poderia tomar outra atitude! O céu é testemunha! Que todos os anjos cortem-me com espadas de fogo se tive outra saída! Fui até o bar da esquina pedir ajuda. Muitos distintos aqueles senhores! Foram tão solícitos, me ofereceram até um pouco de polvilho, ou açúcar, não sei bem. Disseram-me que seria ótimo para acalmar as crianças quando elas aparecessem. Mas como podia dar algo para as crianças sem saber direito o que era?

Meu dulcíssimo Jesus, novamente pequei pela ignorância, Perdoa-me! Sei que em Sua infinita bondade não me condenarás por isso. Estiquei duas carreiras e meti bala! Desculpe, cheirei o açúcar. É isso. Só para ver se era açúcar mesmo e não faria mal aos anjinhos. Olha, açúcar não era. Mas senti uma paz indescritível, como se gozasse de todas as bênçãos do Senhor, e flutuava, oh! Senhor! flutuava dentre nuvens brancas e toda a doçura do mel me era servida por rapagões muito disponíveis, digo, gentis, e vi que tudo era bom! Espiando lá embaixo, os filhotinhos de belzebu todos armados, levando uns pacotinhos daquela divina substância para cima e para baixo no morro servindo aqueles gentis senhores! Nunca mais teriam que ir ao zoológico! E aqueles desprezíveis senhores lá da delegacia apareciam e então levavam os belzebuzinhos embora e os entregavam às suas mães e iam todos arderem para sempre no fogo dos infernos! Aleluia!

Como pode ver, nada foi tão grave quanto a madre estava gritando a pouco. Peço a Deus, aqui por sua magnificentíssima pessoa representada, perdão pelo único pecado que cometi, ponto pacífico!, que foi o de justamente omitir o fato de minha habilitação estar vencida há mais de 20 anos. Mea culpa! E que Deus tenha piedade de nós, Amém! 

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