CALVIN
CLAIM
Luís Valise
O trem estava
lotado até a tampa. Todos democraticamente espremidos, os corpos oscilando
ao sabor das curvas da estrada. Os que conseguiam segurar nas alças de
apoio sustentavam o peso dos que conseguiam meramente um chão onde plantar
os pés. Homens, mulheres, cheiros vários: perfumes baratos, suor, comida.
Às vezes um choro de criança conseguia piorar a viagem. O comboio passava
direto por estações apinhadas de trabalhadores com menos sorte. De repente
um gozador soltava o grito: - Tira a mão daí!, e todos riam pra espantar
não se sabe se a tristeza ou a raiva. Só quando era uma mulher quem gritava
“Tira a mão daí!” que ninguém ria. Alguns homens espichavam o pescoço
tentando identificar o safado, mas a própria mulher fazia o possível para
não ser identificada. Quando o trem chegava no ponto final a massa escorria
pelas plataformas, e ao chegar à rua todos iam voltando a ser alguém.
Ao sair da estação, Zenóbio sentiu o sol batendo de frente nos seus olhos. Tirou do bolso os óculos escuros de nome impronunciável garantidos pelo camelô: - Contrabando. Coisa de bacana. Eu garanto. Faço em duas vezes, uma agora e outra no dia do pagamento. O mundo ficou azulado parecendo filme colorido. O dinheiro ia faltar um pouquinho, mas também (que diabo!) ele tinha suas vontades! Entrou no Banco pela porta de funcionários, e foi direto para o vestiário. Tirou de dentro do armário a farda de Segurança. Pendurou a roupa de paisano, o corpo já meio suado, não tinha jeito, vestiu a farda marrom. A gravata de plástico preto deu o toque de autoridade. No almoxarifado assinou o Termo de Responsabilidade, e retirou o cinturão com cartucheira, revólver e munição. Conferiu as balas e encheu o tambor da arma. Subiu de elevador para seu posto no saguão principal, que era imenso, com chão de mármore, teto alto, ar-condicionado sussurrando baixinho. Sua função era olhar as pessoas. Só isso. Olhar. Se entrasse ladrão ele não podia reagir. Tinha que obedecer o bandido, e pronto. No curso de duas semanas os instrutores, que eram homens da polícia, insistiam nisso: - Não reajam! Deixem isso para nós, que somos profissionais! Vocês estarão nos Bancos apenas para intimidar, fazer de conta que servem para alguma coisa! Zenóbio se sentia humilhado, queria mostrar que era capaz de enfrentar ladrão, mas a precisão do emprego era maior, e ele se calava. E no seu posto ele estufava o peito (que não era muito) e analisava com olhar severo as pessoas que entravam no Banco. O peso da arma contra a coxa afastava a humilhação, e ele pensava no seu caçula vendo-o assim, Autoridade. Depois de ficar o dia inteiro em pé, a viagem de volta era ainda pior. O caminho da estação até em casa, na escuridão, por ruas de terra que escondiam buracos traiçoeiros. Cauteloso, Zenóbio andava sempre pela mesma trilha, como um soldado que conhece o campo minado. Avistou de longe a silhueta do casebre de blocos. Ao chegar ao portão deu pela falta dos latidos do Faísca, que podia ser magrelo mas era esperto. Quem apareceu foi o caçula Agenor, bermuda imensa no corpinho mirrado. Abraçou a perna do pai e perguntou: - Trouxe o revólver? Zenóbio achou graça na pergunta do menino, porque nunca trazia a arma pra casa. - E eu vou trazer revólver pra casa praquê, menino? Pra você mais seu irmão brincar de polícia e bandido? - Pra matar o ladrão. Ele roubou a televisão. Zenóbio afastou a criança e entrou em casa. A lâmpada pendurada no fio que vinha do teto iluminava o cômodo que servia de cozinha e de sala. Numa parede o fogão a gás e a geladeira, tudo comprado de segunda mão, mas funcionando. A pia com cortina de plástico embaixo, escondendo duas prateleiras com panelas e mantimentos. Ao lado da entrada havia um sofá coberto de plástico, as molas querendo saltar, e defronte uma estante improvisada com blocos de concreto e uma tábua. Faltava a televisão. Colorida, nova de quatro prestações. Ouviu um lamento que vinha do quarto, e entrou no outro cômodo. Deitada na cama do casal, Valdiléia soluçava baixinho. Na caminha ao lado, onde dormiam os dois meninos, o mais velho, Welington, consolava a mãe: - Chora não, mãínha, ninguém tem culpa, ninguém podia fazer nada. Tinha mais é que obedecer, senão tava nóis tudo lascado! Zenóbio sentou na beira da cama grande: - Me conte. Como a mulher não parasse de soluçar, ele pegou seu tornozelo e sacudiu: - Me conte, já disse! Valdiléia então, entre soluços, contou como um marginal entrara lá dentro enquanto um comparsa ficava na porta vigiando. Como ele virou as latas de mantimentos procurando dinheiro e, não achando nada, como deu um tabefe nela. Os meninos assustados num canto. Depois disse que aquela era uma casa de merda, devia mais era botar fogo! Ela implorou pelo amor de Deus e levou mais um tabefe. Então ele pegou a televisão e pôs num carro parado na porta. O Faísca tentou morder, mas levou um pontapé tão forte que ganiu, correu e até agora não voltou. Zenóbio ficou um tempo sentado onde estava, cabeça baixa. Os dois filhos, olhos arregalados, olhavam para ele, mudos. Então ele se levantou e deu a ordem: - Ninguém sai daqui até eu voltar. Mexeu em alguma coisa na cozinha, e saiu para a rua. Subiu a rua esburacada até chegar no bar do Pernambuco. Uma birosca pequena e mal-iluminada, na entrada uma mini mesa de sinuca, onde homens jogavam a dinheiro e falavam alto. Quase todos ali vestiam bermudas e calçavam chinelos de plástico, e isso não era uma opção. Algumas pingas depois, Zenóbio pôs seu óculos de grife. Os que tinham algum juízo foram saindo. Ficaram os que achavam a morte ponto pacífico. |