ZILCA
Heringer
Aula de português, e hei-lo que surge presto,
à porta. Magro, alto, moreno, porte quase atlético, não era um homem belo,
mas tampouco desagradava. Assim era o nosso professor da língua materna: usava
uma roupa antiquada, mas nem por isso menos apresentável: calças bastante
folgadas, um tanto curtas, e com vinco indeslindável; camisa social muito
branca, e com os punhos quase sempre dobrados. E tinha a mania de colocar uma
das mãos no bolso das calças. Nós, os seus alunos, vivíamos a discutir que
motivos o levavam a agir assim, e era quase um consenso, dentro do grupo, a
seguinte explicação: Zilca, era ela a razão dele manter a mão no bolso - e
sempre a mão esquerda!
Zilca era a única mulher da nossa turma. Éramos dezesseis alunos - a menor e
mais unida turma de colégio, que participei - sendo quinze os homens, e ela, a
fêmea singular, e coisa muito, mas muito especial! Morena, corpo de tumultuar
trânsito e beleza descomunal. Às vezes, confesso, ficávamos mais atentos aos
requebros dela que nos apelos dos nossos professores. Zilca nos pertencia - a
todos. E ai de quem se atrevesse a bulir com ela. Seria alvo de um ódio
coletivo, enfurecido e deveras perigoso. E todos respeitavam este pacto.
Bem, tanta beleza não podia passar despercebida aos nossos professores: claro,
falo dos machos, pois que as nossas professoras - e eram somente duas meigas
senhoras - não pareciam se impressionar muito com ela, e se o faziam, nem
demonstravam. Mas, coitado daquele homem. Zilca parecia ter um prazer especial
em desconcertá-lo. Sentada, ao centro da sala, na primeira fileira, sua
carteira ficava exatamente em frente do quadro-negro, e podíamos perceber
claramente como isso o atormentava, deixando-o excitadíssimo - daí a mão no
bolso, que era pra disfarçar as ereções, que segundo as más línguas, eram
freqüentes. Se assim não fizesse, e pudéssemos apanhá-lo num flagrante, toda
a classe iria zombar dele, rir muito e fazer piadinhas de mau gosto. Então, ele
se protegia como podia.
Aqueles, eram outros tempos: tempos de bossas, que já eram novas, de mini-saias
e rock and roll. Nossos rádios tocavam Roberto Carlos, Erasmo e a Ternurinha -
também esta, dona de pernas maravilhosas! Mas também se ouvia, The Hollies, os
Rolling Stones e os Beatles, e os jovens se assanhavam como nunca, em todo o
mundo, iniciando uma revolução de costumes que iria abalar as estruturas da
moralidade vigente. Zilca sabia tirar partido disso, tanto que se exibia
desavergonhada, deixando o pobre homem aflito e mal se contendo nas próprias
calças.
No entanto, naquele dia, ele mal nos olhou. Deixou um livro sobre a mesa, pegou
do giz e escreveu na lousa o título: "Ponto Pacífico". E nos ordenou
que escrevêssemos uma dissertação sobre tal tema. E aí, enfurnou-se de vez
em sua leitura, e de lá saiu somente ao sinal do encerramento da aula, quando
então, recolheu todos os trabalhos.
Confesso que não me lembro do que escrevi na ocasião, mas sim que ganhei uma
nota ridícula pelo trabalho, e que só me resignei, mais tarde, quando descobri
que nenhum de nós saíra do vermelho. Hoje, isso não teria qualquer
importância, não fosse o fato de que tais lembranças vieram, justa e
juntamente, com uma notícia alvissareira: acabo de localizar na da rede mundial
de computadores - a Internet - a nossa preciosa Zilca. Com os anos fez-se uma
arquiteta de razoável sucesso; andou pela China; e teve um filho que já é
moço. Gosta de escrever e publica os seus contos na rede. Enviuvou-se ainda
nova a coitadinha, e agora, reside na cidade de São Salvador, na Bahia, e de
lá, mantém o belo site que acabo de encontrar. Não vejo a hora de contar pra
turma - o seu fã clube remanescente, com o qual ainda mantenho algum contato -
que finalmente achamos a nossa diva. Só desejo, e com todas as forças do meu
ser, que o tempo não tenha feito nela os estragos e atrocidades, que andou
fazendo conosco - os seus queridinhos, como nos chamava - e que a idolatravam
quase à morte, como a uma deusa; e que pretendem nunca se esquecer dela. Já o
nosso professor, o infeliz, soube, de algumas fontes, que teria falecido, e
confesso, que tenho uma mórbida curiosidade de descobrir o que teria mandado
escrever na laje da sua última morada. Talvez fosse: "Zilca, foste o meu
último pensamento!". E me pego rindo, desbragadamente, destas idéias
malucas e extravagantes, como a de imaginá-lo, lá, deitado, hirto, em seu
ataúde aveludado e demodê, com uma das mãos pousada sobre o peito inerte,
sendo que a outra, a esquerda, e indefectível... se esconde dentro do bolso, da
calça impecável.
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