É
PONTO PACÍFICO: NADA
MELHOR QUE UMA VIAGEM EM FAMÍLIA
Gil Cordeiro Dias Ferreira
Dezembro de 1984. Chego em casa e, entre surpreso e exultante, divulgo o "furo" do dia: fruto, ao que consta, de alguns sucessos profissionais, fui brindado com um estágio de um ano na Inglaterra, a iniciar-se dentro de sete meses. Aos 38 anos, casado há sete e meio e com apenas uma filha de cinco, vivo momentos cruciais para a construção de um futuro tranqüilo para nós três; a oportunidade que surge, de trabalhar no exterior, ainda que por não muito tempo, é essencial a esse fim - do desempenho no estrangeiro dependerá a progressão na carreira, quando do regresso ao Brasil. Cônscio das grandes responsabilidades que devo assumir, celebro com a família e, juntos, damos partida aos infindáveis e complexos preparativos para essa fantástica experiência, de vermos concretizar-se um sonho antigo.
Julho de 1985. Viajar de avião não é novidade para minha filha, que o faz desde recém-nascida, inclusive sem nossa presença - aliás, parece-me ser a aventura de que mais gosta: bolsa plástica de documentos ao pescoço, mãos dadas com a aeromoça, com direito a primeira-classe sem que paguemos mais por isso, rumo à casa dos avós. Mas agora é diferente: serão nove horas de vôo até Londres. Ocupamos três das cinco cadeiras, um tanto apertadas, de uma linha central de assentos. Tudo é novidade: o cinema a bordo, os fones de ouvido, o farto e saboroso jantar...e de repente, João - Pestana chega, e ela, sem qualquer cerimônia, estica-se entre minha mulher e eu, ferra no sono, remexe-se muito...e nos faz chegar a Londres estremunhados: não pregamos olho, a noite inteira !
A primeira semana transcorre em um pequeno e simpático hotel do centro de Londres, até alugarmos, por meio da instituição onde trabalharei, a confortável casa de dois pavimentos em que residiremos, no subúrbio de Woolwich. Embora seja verão, a temperatura é baixa, para nós. Temos alguns dias de folga, até que meu trabalho tenha início. Entre os passeios no Regent's Park, Oxford Street, Madame Tussaud, Trafalgar Square, Palácio de Buckingham e outros pontos turísticos, a alimentação começa a nos preocupar: pouco afeitos aos hábitos londrinos, tipo fish-and-fries, scottish egg e kidney pie, só conseguimos comer sanduíches do velho Mac Donald's; mas lá um belo dia, em plena Baker Street, os três, simultaneamente, sentem um aroma inconfundível, e pronunciam à uma - "churrasco"! E com efeito - bem à nossa frente, num agradável restaurante grego, divisamos o braseiro onde eram assadas partes nobres de ovelha. Ah, que festa ! Mas quando vem a conta...
O trabalho tem início. Meio assustado com o aviso, dado por amigos brasileiros, de que na Inglaterra o uso da palmatória em escolas é autorizado por lei, matriculo minha filha numa "Infant School" - o Jardim de Infância local; em pouco tempo, ela está falando cockney, como uma autêntica londoner, e aprende a manusear com desenvoltura o complicadíssimo controle remoto de oitenta funções, da TV a cabo que alugamos. Criança tem cada uma...
Para a esposa, todavia, os encargos são pesados: cuidar da casa e da filha, sem empregada, fazer compras sem dominar bem o Inglês, tentar adaptar-se à solidão...Afinal, sou o único brasileiro, no trabalho. Há, todavia, outros estrangeiros trabalhando comigo, todos residindo próximo a nós, e logo estabelecemos um bom círculo de amigos - norte-americanos, canadenses, alemães, australianos, argelinos, japoneses e, principalmente, os muçulmanos ortodoxos de Bangladesh, Oman, Paquistão, Egito e Malásia. Estes últimos são considerados "suspeitos" pelos ingleses, por serem totalmente abstêmios e preocupadíssimos com a possibilidade de ingerirem, por engano, um miligrama que seja de carne de porco ! Mas todos têm filhos da mesma idade da nossa, matriculados na mesma escola; e até hoje não consigo compreender como minha filha se entendia perfeitamente com um menino de Bangladesh, que não falava inglês, mas...sânscrito e árabe !
Anseio por oferecer à família alguns passeios pela Europa, mas há algumas dificuldades: menores de doze anos não podem participar de viagens de ônibus; a alternativa do trem consumiria muito tempo, e as folgas de que disponho no trabalho são insuficientes para isso; o custo do transporte aéreo nos desanima; mas lá num "feriadão" inglês (não é só no Brasil...), a oportunidade surge: vamos a Paris !
O planejamento da afamada empresa de cartões de crédito que nos proporciona o passeio é meticulosíssimo: entregam-nos um envelope plástico transparente, para que guardemos nossos dólares separadamente da moeda local; cedem-nos um mapa do centro de Paris, onde assinalaram com tinta vermelha o trajeto que o táxi deve fazer, da Gare du Nord, onde desembarcaremos do trem, até o hotel onde nos hospedaremos; e fazem mil e uma recomendações para não cairmos em algum "conto-do-vigário"...Incrível !
Chega o dia. São sete traslados: um táxi de nossa casa à parada ferroviária de Woolwich; um trem suburbano, dali à famosa estação de Charing Cross; conexão, pelo Underground, ou "Tube" (o metrô) até Victoria Station; mais uma longa viagem de trem até Dover Priory; aqui, o tão falado hovercraft, para cruzarmos o Canal da Mancha, até Calais (ainda não existia o túnel submarino, ou "chunnel"); novo trem, cruzando belíssimas áreas rurais da França, até Paris; e o táxi para o hotel. Ufa ! Mas o grande problema transcorre a bordo do hovercraft. Como de costume, o tempo, no Canal da Mancha, é péssimo. O barco, hermeticamente fechado, sacoleja barbaramente. A motion sickness é inevitável, e os saquinhos de papel, idênticos aos existentes nos aviões, acabam sendo usados...
A chegada a Paris faz com que nos esqueçamos desses dissabores. Da Gare du Nord ao hotel, o trajeto é longo. Excitados com a visão de locais só conhecidos por fotos ou filmes, falamos alto: "A Torre Eiffel !" "O Louvre !" . O motorista sorri, impassível. Converso com ele num Francês bem arranhado, lembrança do ginásio. Ele parece me entender bem. Chegamos ao hotel, depois de uma meia hora, e, na porta, ele me pergunta, com o conhecido sotaque da terrinha:
"Ai, que vocês são brasileiros ?" Começo a rir, e pergunto a ele por que não se identificou logo como português, quando nos ouviu. E o gajo , aparentemente sério, responde:
"Mas Vossas Excelências não disseram nada..."
Todavia, a estada em Paris será curta. Urge passear. Deixamos as malas no hotel e saímos pela Cidade - Luz: Nôtre - Dame, Montmartre, Quartier Latin, Tour Eiffel....Lá pelas tantas, uma parada no Café de La Paix, onde a garçonete, que é espanhola, se encanta com nossa filha, e leva-a para escorregar pelo corrimão das escadas que levam ao segundo piso, caindo sentada no chão, deixando-nos mortos de vergonha, ante os olhares de reprovação dos silenciosos freqüentadores do local...E mais ainda, quando ela se lambuza toda, ao comer o mais enfeitado sorvete que já vimos em nossas vidas. À noite, uma visita à Place Pigalle - pouquíssimo recomendável para crianças, em nossa opinião, mas os franceses não dão a mínima para isso...
Voltamos à Inglaterra, agora desfrutando de um mar de Almirante, graças a Deus. E daí para a frente, apenas trabalho. Passeios, só muito curtos, nos fins de semana, no entorno de Londres. Vem o inverno, tudo fica mais difícil. É inevitável que a esposa e a filha retornem ao Brasil, em janeiro de 1986. Fico sozinho, até maio. Visito, a serviço, a Noruega, a Bélgica, a Escócia e a Alemanha, ainda dividida. E cheio de saudades do Reino Unido, retorno ao Brasil, sonhando em um dia voltar...
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