DESTINO
Cléo Siqueira

Poderia... ter-me preparado para estas dores, mas não, não cogitei sequer a possibilidade de vivê-las alguma vez. Talvez, por isto, pegaram-me deste modo: elástico que, estando tenso, solta-se num solavanco chocando-me com o que jamais supus. Esfacelo-me em uma montanha bruta e inevitável como se os meus pedaços lhe fizessem parte, como se ela me esperasse serena por saber da minha chegada, um dia. Ou que de mim fizesse parte como um órgão de que necessito, mas que, doente, me queima, me dói, me faz sofrer o que chamam de inferno. Este é o inferno. O que amputa, o que castra, o que mata em vida.

Poderia ter me preparado para estas dores que derramam o sal dos meus olhos, infestam os meus pulmões e espalham o sangue no meu peito. Poderia... se aos homens fosse permitido saber a topografia da vida e, assim, localizar a montanha de fel no mapa de alguns. Poderia... contornar o sopé da minha montanha, evitar o encontro estrondoso e estraçalhante, não soterrar nos pedaços em que me tornei. Poderia? E se pudesse? Teria percebido o prazeiroso caminho até ela? Espreguiçado-me sob os braços ternos dos que não estariam após o transpassar da montanha? Guardado risos, choros, aventuras, esbórnias, esporros? Recebido os gestos e as palavras, desprotegidamente, que hoje se tornam raros mimos no meu embornal de lembranças? Agasalhado os meus silentes amores ainda que eu sentisse frio? Poderia, de fato, ter me preparado para estas dores? Ou, sabendo delas, as sentiria antes de encontrá-las perdendo, então, toda a beleza amena e furiosa da partilha?

Não, não poderia... é o destino, sempre ignorado. Mas posso... posso fazer parte da montanha, deixá-la ser minha, passar por ela. Criar abrigos em sua terra que me permitam a calma saudade do que tive e do que fui. Plantar árvores fortes que, ao crescerem, se tornem conforto aos que as encontrem. Revelar o que descubro neste cerne de fel: a imensidão feroz desta montanha pode ser somente uma face morna da resignação. Deixar pegadas que se tornem trilhas de esperança para os que ainda não se deram conta de que o imutável não é o fato encerrado, mas o que este fato deixa como inspiração e força para uma existência renovada.

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