NECROLOGIA
Carlos C. Alberts
Ano de 1980, Março
Era Sexta-feira da primeira semana de aula do primeiro ano do curso de Biologia. Uma Faculdade importante de uma Universidade de peso. "A melhor Universidade do Brasil", falava-se. Cada calouro tinha eliminado catorze concorrentes para estar ali. "Um processo de seleção natural", era a justificativa. Além dos trotes, e da emoção de "ter conseguido", os alunos estavam um tanto decepcionados. Durante a semana, tiveram as primeiras aulas de "Matemática Aplicada", "Química I", "Física I", "Estatística I".
Cadê as disciplinas de Biologia? Tá certo, tiveram "Anatomia Vegetal", mas e o "Filé Mignon"? Por isso a expectativa. Naquela Sexta-feira, às 8:30h, ("em ponto", advertira a secretaria dizendo que o Professor era muito rígido quanto a horários), começaria a disciplina Zoologia de Vertebrados I. Quarenta jovens privilegiados esperavam mudos a chegada do famoso Doutor.
Às 8:29h, como se estivesse entrando em um palco, mas agindo como se o teatro estivesse vazio (queixo erguido, olhando para frente, passos decididos mas sem pressa), aparece um homem impressionante. Mais jovem que o esperado, cabelo curto, levemente grisalho, cavanhaque, testa alta, guarda-pó de linho branquíssimo (com o nome bordado no bolso de cima). A expressão de quem sabe todos os segredos da natureza. Senta-se na cadeira atrás da grande mesa de madeira nobre e, finalmente olha em direção aos alunos. Em direção a eles, não para eles. Como se estivesse falando consigo mesmo (mas usando uma voz poderosa), faz a chamada. Levanta uma sobrancelha quando pronuncia o sobrenome de origem escandinava de um aluno.
Depois da chamada, levanta-se, e anda de um lado para outro da sala de aula, no espaço entre a mesa e as carteiras dos alunos. Com o mesmo número de passos na ida e na volta. Parando no centro a cada duas voltas, olhando para a direção dos alunos e retomando a caminhada (sempre na mesma velocidade). Com a voz poderosa e ainda parecendo estar falando consigo mesmo, discorre sobre o conteúdo da disciplina que se inicia. Os alunos nem piscam. Quando está falando sobre o sistema de avaliação que atribuirá as notas finais, o mais inesperado acontece. Um aluno levanta (hesitante) o braço, como a pedir a palavra. O Professor estaca em sua caminhada, chocado.
- Pois não?
O aluno com sobrenome escandinavo, evitando olhar para frente, pergunta:
- O senhor deseja que cada aluno colete, sacrifique e prepare 20 espécimes de répteis durante o primeiro semestre e apresente a coleção como parte da avaliação, valendo 50% da média final?
O Professor, ainda atônito com a interrupção.
- Perfeitamente.
O aluno, agora olhando para o chão.
- Se fizermos uma conta rápida, em cerca de quatro meses, mataremos 800 animais. Isto não traria algum efeito negativo sobre a ecologia da região?
A classe se transforma numa instalação moderna em um museu de arte de vanguarda. 41 estátuas, sendo que a do Professor tem a boca aberta enquanto todas as outras olham para as próprias mãos.
Finalmente o efeito é quebrado quando o Professor olha em direção ao teto (como quem acaba de sofrer um desastre e tenta compreender: por que eu?). Os alunos se mexem nervosos nas carteiras. O de sobrenome escandinavo tem a cabeça tão voltada para baixo que o queixo toca o peito. O Professor abre os braços, olhando o fundo da sala (de maneira que todos têm a impressão que ele está olhando diretamente para cada um deles) e fala.
- Somos um grupo de sorte: na primeira semana de aula um aluno já conhece todos os princípios da ecologia e zoologia e sabe o efeito da retirada de um determinado número de animais sobre a cadeia alimentar do ecossistema. Para que esperar quatro anos para tirar o Diploma? Vamos tratar disso imediatamente.
Novamente o efeito das estátuas em uma instalação moderna. Agora o Professor olha diretamente para o aluno. Lentamente, retoma a caminhada de um lado para outro. Recomeça a discorrer sobre a avaliação. Nota, totalmente incrédulo, o mesmo aluno com o braço levantado. Para e, um pouco rouco, pergunta.
- Que dúvida ainda pode haver em tão brilhante cérebro?
Falando de maneira quase inaudível, encolhido na cadeira, o aluno balbucia.
- Mas teremos que matar estes animais inocentes? Eu terei que matar vinte anim...
- Ninguém vai matar nada.
Interrompe o Professor. E continua.
- Biólogos SACRIFICAM animais. Para o bem da Ciência, do Ensino e até dos próprios animais, na medida em que o conhecimento decorrente do estudo do animal sacrificado poderá beneficiar a própria espécie que perdeu um membro. O sacrifício de animais é imprescindível para o estudo e o ensino da zoologia. Isto é ponto pacífico.
O restante da aula transcorreu sem maiores incidentes. O aluno com sobrenome escandinavo teve alguma dificuldade quando coletou e sacrificou seu primeiro animal, uma lagartixa. Mas depois, se esforçou e apresentou a melhor coleção da turma. Sua média final foi 9.65, a mais alta jamais atribuída pelo Professor.
Ano de 2000, Março
Sexta-feira, primeira semana do primeiro ano do Curso de Biologia. Um dos melhores Cursos de Biologia de uma Universidade importante. "A terceira melhor do Estado de São Paulo". O trote, "politicamente correto", foi legal. Ter eliminado 22 concorrentes para estar ali, fazia cada calouro se sentir o máximo. A semana tinha sido interessante, mas aquelas disciplinas básicas de biologia, "Histologia", "Ontologia Animal", "Procariotos I" e "Filosofia da Ciência" eram muito técnicas. Nenhuma delas parecia ter nada em comum entre si. Cadê as disciplinas integradoras? Tá certo, tiveram "Invertebrados I", mas muitos queriam saber dos "animais" (para estes, os invertebrados são "bichos"). Por isso a expectativa. Hoje iria começar a disciplina "Vertebrados", lá pelas nove horas (o Professor era liberal, disseram os colegas veteranos). Quarenta jovens privilegiados (sem ter consciência disso) esperavam pelo docente, batendo papo.
Às 9:07h, como se estivesse entrando no cenário de um show de auditório, aparece um homem interessante. Barba curta, cabelo comprido (puxado para trás e preso num "rabo de cavalo"), ambos levemente grisalhos. Vestindo jeans e uma camiseta preta básica, vai até a lousa e escreve seu nome completo (precedido pelo título de Dr.). O sobrenome é escandinavo. Depois, senta sobre o tampo da mesa de fórmica. Os alunos têm a impressão que ele conhece todos os segredos da natureza. O zunzum diminui e, sorrindo discretamente, como se estivesse falando para uma câmera de TV, o Professor explica algumas regras da disciplina que se inicia. Não vai fazer chamada ("somos todos adultos e eu não vou obrigar ninguém a gostar de minhas aulas", expõe), exceto hoje, só para conhecer cada um pelo nome. Um murmúrio de aprovação ecoa entre os alunos. Segurando a planilha de chamada e, como se estivesse em um desfile de moda, caminha no espaço entre a mesa e a carteira dos alunos. A cada nome chamado, olha para o aluno, sorri e, às vezes, faz algum comentário ("descendente de Armênios?"; "você é do Rio Grande do Sul?"; "filho do deputado?"). Ao chamar um nome feminino, recebe a resposta de uma aluna muito bonita ("bonita demais para ser uma boa bióloga" pensa com leve antipatia), e sorri olhando diretamente para seus olhos verdes.
Depois da chamada, descrevendo o conteúdo da disciplina, continua o show (cada palavra, cada movimento, cada pausa, planejados para acentuar o efeito desejado: um homem sábio, benevolente e charmoso). Ao passar para os critérios de avaliação, os alunos ficam ainda mais agradavelmente surpresos. As provas serão feitas em casa e com consulta (mas não devem ser feitas em conjunto). Os seminários serão apresentados em grupos de três (mas a partir de textos em inglês). Os relatórios da excursão (para o litoral, oba) serão grupais. Quando está descrevendo a última parte da avaliação, a aluna bonita levanta o braço, pedindo a palavra.
- Sim? (contrariado pela interrupção do show, mas sorrindo e olhando nos olhos verdes).
A aluna, cabeça erguida, voz firme, olhar sério.
- Você quer que cada grupo de três alunos sacrifique um anfíbio, um réptil e um peixe para fazermos o trabalho de diafanização?
O Professor, ainda sorrindo, como se estivesse falando com uma criança, diz docemente.
- Você entendeu perfeitamente o que eu preciso que vocês façam, meu bem.
A aluna, com a voz num volume levemente acima.
- Você não acha que poderíamos diminuir o número de animais, um por grupo, por exemplo, ou você mesmo demonstraria a técnica somente com um animal ?
Um murmúrio de desaprovação em relação à colega surge entre os alunos.
O professor, pensando "essa aí deve ser vegetariana", perfeitamente calmo e ainda falando como se a aluna fosse uma criança, diz.
- Você deve ter lido muito e parece conhecer profundamente as necessidades pedagógicas de um curso de zoologia. Talvez você e eu devêssemos trocar de lugar e você continua a disciplina, meu bem.
Um burburinho zombeteiro aparece entre os outros alunos. O professor retoma o desfile, mas pára em seguida quando nota que a aluna está de pé com o braço levantado. Com uma expressão que demonstra um misto de compreensão e pena, fala mansamente.
- O que você ainda deseja compartilhar conosco, meu bem?
O tom escuro da pele da bela aluna não esconde o rubor em sua face. Passa a mão sobre os cabelos encaracolados que teimam em ficar sobre sua testa. Mesmo assim, alguns fios permanecem sobre um dos olhos. As mãos apertadas sobre o tampo da carteira. Com o volume da voz ainda mais alto, desabafa.
- Eu não estou preparada para matar animais. Para mim, são seres indefesos e sua morte somente deve ser usada como último recurso.
O Professor aproxima-se, pelo corredor entre as carteiras, da aluna, que está ainda em pé. Não está mais sorrindo. Não está mais desfilando. O showman deu lugar a um homem com uma convicção. Fala com uma voz poderosa.
- Ninguém vai matar nada. Biólogos SACRIFICAM animais. Para o bem da Ciência, do Ensino e até dos próprios animais, na medida em que o conhecimento decorrente do estudo do animal sacrificado poderá beneficiar a própria espécie que perdeu um membro. O sacrifício de animais é imprescindível para o estudo e o ensino da zoologia. Isto é ponto pacífico. Meu bem.
A aluna sai de trás de sua carteira, caminha decidida em direção ao Professor e pára. Os dois estão muito próximos. Os olhos verdes parecem emitir faíscas. Uma pequena veia salta em sua testa. Ela fala muito baixo.
- Este curso não deveria se chamar "Biologia", o estudo da vida. Deveria chamar-se "Necrologia". Todas as disciplinas que eu conheci esta semana usam organismos mortos ou partes deles para o ensino. Eu pensei que o seu curso seria diferente, porque os veteranos falaram que você era "legal" e trabalha com comportamento animal. Como você consegue? Você estuda como eles morrem?
Ao dizer isso, vai até sua carteira, pega suas coisas, volta pelo mesmo caminho, batendo o pé. Passa roçando o professor (que continua no mesmo lugar) e dirige-se à porta. Abre-a, pára, volta a cabeça em direção ao Professor (os cabelos longos e cacheados, flutuam seguindo o movimento da cabeça). Fala pausadamente, mas bem alto.
- E eu não sou o seu bem.
Sai e bate a porta.
O Professor tem uma sensação de déjà vu. A sala novamente parece uma instalação moderna em um museu de arte de vanguarda. Todas as estátuas estão com o olhar fixo na porta. O efeito é quebrado quando o Professor, retomando o papel de showman, charmoso, levanta os ombros e abre os braços, como quem diz "faz parte do show e o show deve continuar". A aula transcorre sem maiores problemas. Mas o Professor, ainda que sorridente, está preocupado.
A aluna bonita continua o curso (para a surpresa do Professor e dela mesma). Sofre ao sacrificar um sapo (em um recipiente de vidro grande fechado, com algodão embebido em Éter e Clorofórmio). Mas esforça-se e apresenta, junto com seu grupo, a melhor coleção de animais diafanizados. Recebem a nota 10.0 (na única vez que o Professor atribuiu tal nota).
Ano de 2002, Março
A aluna bonita é a mais destacada estagiária do Laboratório de Comportamento de Vertebrados.
O Professor com sobrenome escandinavo, não exige mais o sacrifício de animais em sua disciplina de Vertebrados.
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