Tudo
começou com a menina gargalhando. Não foi um crescente, assim como uma
chuva fina que molha, molha e molha até encharcar. Foi uma tempestade!
Daquelas de verão, que vem, paralisa tudo e todos em seus lugares e de
repente... passou. Deixa apenas o caos. Foi a gargalhada da menina que
paralisou o trânsito da tarde em pleno centro comercial. O motivo
do riso era bobo, ela ria do irmão maior fingindo que trombava com os
postes e árvores em seu caminho. A cada novo obstáculo, uma encenação
que fazia a menina soluçar numa gargalhada incontrolável. Voltavam da
escola. Uniforme azul, camiseta branca, blusa amarrada na cintura e arrastando
uma manga pela calçada. A mochila deslizava sobre duas rodinhas que pareciam
correr atrás do punho, querendo alcançá-lo.
Não sei se fui o primeiro a ouvi-la, sei que ri com o riso da menina.
Depois gargalhei com ela e só me dei conta do contágio ao meter a testa
no poste à minha frente. Mas a moça na porta da loja nem me olhou, ela
também rindo, envolvida pelo gargalhar infantil. O porteiro do edifício
comercial gargalhava no mesmo ritmo da menina e até o pedinte no semáforo
esqueceu sua miséria e riu com ela. Fora a leve dor na testa, nada mais
comprovava minha trapalhada.
O riso cristalino, puro, foi perseguindo a manga da blusa pela calçada
e parando homens engravatados, chamando gente à janela, contagiando os
que corriam para casa após o expediente, desviando a atenção dos seguranças.
Por alguns minutos as ruas se tornaram seguras e os risos estampados nas
faces esconderam angustias, temores e amores. Por instantes, hipnotizados
pelo riso fácil, ninguém parecia ter problemas financeiros, de saúde,
de solidão. A esquina toda ficou encantada, presa no gargalhar da menina.
Imune a toda transformação que causava, a gargalhada seguia a mochila
de rodinhas que seguia a manga da blusa que pendia da menina que encantava
estranhos apenas rindo das palhaçadas do irmão. Assim que a dupla virou
na esquina a cidade voltou ao caos e eu fiquei sozinho com minha dor.
Na dor sentida eu pensei que o maior problema do adulto é se preocupar
demasiado com a própria vida e esquecer a infância, o riso fácil, as brincadeiras
com amigos, a prosa com vizinhos. Esquecer a comunidade. Ninguém mais
coloca a cadeira na calçada, no início da noite para assistir o filho
brincar de pique-esconde com os amiguinhos. Excluindo a fofoqueira de
plantão, que é uma instituição obrigatória em todo bairro católico que
se preze, ninguém mais se preocupa em saber quem são os novos vizinhos,
quem a ambulância veio buscar na madrugada, por quê o cachorro da casa
ao lado está latindo. É essa indiferença para com o próximo que permite
um estranho fazer a mudança do vizinho em férias. O coitado volta e encontra
a casa pronta para receber móveis novos.
Mas essa indiferença urbana me pareceu uma casca fina de ovo que se quebra
facilmente. Não sei dos sentimentos e insensibilidades dos transeuntes
que se contagiaram esta tarde, mas parado diante do poste tive a certeza
de que há esperanças enquanto a cidade para se ouve uma menina gargalhar.
Sim, o tema da quinzena é PONTO PACÍFICO, e tudo isso tem
a ver com um ponto pacífico. Aliás, um ponto é pouco. Isso tem
a ver com uma cidade inteira pacífica. Tem a ver com eu sentir saudades
de tudo que meus filhos não podem viver. Tem a ver com a certeza de que
eu aproveitei muito mais as ruas em que morei do que meus filhos... e
essa certeza me dói muito mais que eu meter a testa num poste no meio
do caminho.
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