Tema 063 - PONTO PACÍFICO
BIOGRAFIA
UM POSTE NO MEIO DO CAMINHO
Beto Muniz

Tudo começou com a menina gargalhando. Não foi um crescente, assim como uma chuva fina que molha, molha e molha até encharcar. Foi uma tempestade! Daquelas de verão, que vem, paralisa tudo e todos em seus lugares e de repente... passou. Deixa apenas o caos. Foi a gargalhada da menina que paralisou o trânsito da tarde em pleno centro comercial. O motivo do riso era bobo, ela ria do irmão maior fingindo que trombava com os postes e árvores em seu caminho. A cada novo obstáculo, uma encenação que fazia a menina soluçar numa gargalhada incontrolável. Voltavam da escola. Uniforme azul, camiseta branca, blusa amarrada na cintura e arrastando uma manga pela calçada. A mochila deslizava sobre duas rodinhas que pareciam correr atrás do punho, querendo alcançá-lo. 

Não sei se fui o primeiro a ouvi-la, sei que ri com o riso da menina. Depois gargalhei com ela e só me dei conta do contágio ao meter a testa no poste à minha frente. Mas a moça na porta da loja nem me olhou, ela também rindo, envolvida pelo gargalhar infantil. O porteiro do edifício comercial gargalhava no mesmo ritmo da menina e até o pedinte no semáforo esqueceu sua miséria e riu com ela. Fora a leve dor na testa, nada mais comprovava minha trapalhada. 

O riso cristalino, puro, foi perseguindo a manga da blusa pela calçada e parando homens engravatados, chamando gente à janela, contagiando os que corriam para casa após o expediente, desviando a atenção dos seguranças. Por alguns minutos as ruas se tornaram seguras e os risos estampados nas faces esconderam angustias, temores e amores. Por instantes, hipnotizados pelo riso fácil, ninguém parecia ter problemas financeiros, de saúde, de solidão. A esquina toda ficou encantada, presa no gargalhar da menina.

Imune a toda transformação que causava, a gargalhada seguia a mochila de rodinhas que seguia a manga da blusa que pendia da menina que encantava estranhos apenas rindo das palhaçadas do irmão. Assim que a dupla virou na esquina a cidade voltou ao caos e eu fiquei sozinho com minha dor.

Na dor sentida eu pensei que o maior problema do adulto é se preocupar demasiado com a própria vida e esquecer a infância, o riso fácil, as brincadeiras com amigos, a prosa com vizinhos. Esquecer a comunidade. Ninguém mais coloca a cadeira na calçada, no início da noite para assistir o filho brincar de pique-esconde com os amiguinhos. Excluindo a fofoqueira de plantão, que é uma instituição obrigatória em todo bairro católico que se preze, ninguém mais se preocupa em saber quem são os novos vizinhos, quem a ambulância veio buscar na madrugada, por quê o cachorro da casa ao lado está latindo. É essa indiferença para com o próximo que permite um estranho fazer a mudança do vizinho em férias. O coitado volta e encontra a casa pronta para receber móveis novos.

Mas essa indiferença urbana me pareceu uma casca fina de ovo que se quebra facilmente. Não sei dos sentimentos e insensibilidades dos transeuntes que se contagiaram esta tarde, mas parado diante do poste tive a certeza de que há esperanças enquanto a cidade para se ouve uma menina gargalhar.

Sim, o tema da quinzena é PONTO PACÍFICO, e tudo isso tem a ver com um ponto pacífico. Aliás, um ponto é pouco. Isso tem a ver com uma cidade inteira pacífica. Tem a ver com eu sentir saudades de tudo que meus filhos não podem viver. Tem a ver com a certeza de que eu aproveitei muito mais as ruas em que morei do que meus filhos... e essa certeza me dói muito mais que eu meter a testa num poste no meio do caminho.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor