Acordava sem hora, fosse num nascer do sol, fosse
na hora do almoço. Lavava os olhos e saía do banheiro ajeitando as calças,
direto ao quintal - brilho de manhã, cheiro de mato, orvalho nas folhas.
Passava umas boas horas rastelando, outras cavocando, cortando sapé, galhos
secos, pisando em formigas. A sede de poço na laranja madura, suor filtrado
de pele nova. A bananeira pendendo, quase pronta. O cuidado de não pisar
nos girassóis que engatinhavam. Tudo vibrante de vida, como sêmen recém-semeado.
O joão-de-barro ralhando arrogante, a saíra verde de paraíso, o sanhaço
picando a laranja. A água fértil, escondida, que jorrava no silêncio das
paredes. As latas enferrujadas, desbotadas, fazendo brotar samambaias
de formas torturantes, pendentes, lacrimosas.
A calma das panelas, a risada da frigideira. O grito dos talheres sobre
a mesa. A reza no espelho, agradecida, com som de esconderijo. A distância
segura da loucura, do mundo enlatado de carne em pó, dos cheiros sem forma,
sem sexo. A gargalhada histérica ao céu, num som disfarçado.
Nada era medo, nada era tão descalço. O choro longo da cidade, sorrateiro,
feito queixume desesperado. O gesto sarcástico de pisar na terra, como
desafio aos incautos. Tudo era terra, era capim pisado, era descaso. A
palha queimando cheirava perfume, tingia cabelos e roupas, num odor matuto.
A infâmia da tomada, do clique, da imagem. O som absurdo dos vampiros,
a estática teimosa, o veneno dos duendes. A raiva, a ira, o choro. O rádio
declamando a informação maciça, acovardada.
Notícias, notícias... hordas delas, aos borbotões. Tudo era mal, tudo
ruim, tudo errado. Vozes amordaçadas de alegria, urrando pós, chamando
inocentes. Corpos elegantes chorando lamúrias, trazendo túmulos, jurando
curas. Um povo doente comprando insolências. Tudo escuro, tudo nublado.
A joça generalizada, o escárnio indolente.
O povo maldito insuflando revoltas. A saga covarde esmagando nações. O
riso gorduroso, fétido, iludindo os pensamentos. O rastro enganoso da
Jerusalém invadida. Ímpios ortodoxos vendendo seus crimes. Homens ciosos
por lucros ignóbeis. Mulheres prostitutas com vaginas douradas. Povo amaldiçoado
pelo tempo, vomitando seus últimos dejetos. O ódio dominando minhas palavras,
fruto daquela gente que fazia da vida um mercado odioso.
Jardins de sonho, hortas esverdeadas. Tudo era vida, era grão. Fujo da
calúnia insidiosa, dos turbantes, das jóias nos pescoços enrugados. Tudo
é real, passageiro e eterno. Rio dos calções ridículos dos hermafroditas
urbanos. Seres asfálticos, robóticos, anêmicos, azêmolas, vendendo seus
sub-produtos herméticos, afônicos.
Volta a tarde, de sol grisalho, de lua castelhana. Verdes olhos de dourada
moldura, que me encantam, solfejam sussurros indizíveis.
Deixo meus lábios nos lábios dela, num pouso sereno e incandescente. Tudo
era mar, pacifico, tudo é passado. Rezo a oculta alforria, pontuada com
minhas tréguas. Eu era feliz... e sabia.
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