URUBU
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Rodrigo
Covelati Ramos
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Lembro
bem que era um sábado e que a pressa havia me abandonado a dois quarteirões
da Estação da Luz; na 107 da Antônio Maia, para ser exato, em cujo telhado
de telhas portuguesas encardidas um urubu atento, num uniforme breu, brilhoso,
sentinelava o sono eterno daquela parte do centro velho de São Paulo. Velho
e acabado, quem passou por lá sabe, já viu. Demorei-me no pássaro (que apesar
de pássaro tinha a circunspeção de um oligator) postado lá em cima, enfunado
como se fosse o arquiteto de tudo aquilo ali. A visão suscitou alguns presságios,
dúvidas metafísicas, questões de ordem zoológica, cosmogônica e de signos
que nunca soube e nem saberei decifrar. Enfim, quando, às 10:33, alcancei
a plataforma ainda pude ver o rabicho do trem, deixando para trás, impiedosa
e languidamente, os portentosos umbrais da estação, os trilhos e com a estação
e os trilhos eu mesmo, que não havia pedido por nada. Não xinguei ninguém
porque desconhecia nominalmente a todos, mas tentei incriminar insidiosamente
o urubu que era, de fato, o inocente nessa história toda.
O próximo trem sairia às 13:26. Não perguntei do capricho no horário do próximo trem, mas perguntei do vagão restaurante porque a fome, em sendo fome pra valer (era esse o caso), consome infalivelmente outras dúvidas. Um dos encarregados de prestar informações poupou-me de uma negativa total no caso do vagão apontando com o dedo para uma, não excelente, mas plausível solução gastronômica: era uma tasca na Júlio com a Duque de Caxias. Foi um feito. Empanturrei-me com ânsia de desforra e flagelo. Maldito urubu! Não, o urubu não tinha nada a ver com isso, já disse. Carreguei ainda p/ o sagüão um pastel de bucho de javali e, para estampar naturalidade e interesse, apesar do esdrúxulo em minhas mãos, boca, estômago, fixei o olhar num mural que homenageava os funcionários da RFFSA de 1925. Meia hora depois estava sendo levado semi-consciente, com pastel, mãos e estômago na boca, ao ambulatório que, se não fosse o melhor era o mais perto, na 107 da Antônio Maia para ser exato, por um préstito de desconhecidos e dos rostos dos antigos funcionários da RFFSA. Num último instante ainda vi o urubu, enfunado, como se fosse o arquiteto de tudo aquilo ali. |
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