BICHO
DE ASAS
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Nato
Borges
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Sabiá nasceu no alto do morro. Morava em casa assim, meio pela metade, dessas em que as paredes passam a eternidade esperando pelo reboco, pela tinta. Escolheu o nome ainda menino, bem pequeno. De nascença era Valterson, mas odiava, sempre odiou. Só permitia ser chamado assim pela mãe, que achava bonito chamar o filho. - Vatersú!!! Era assim que o nome dele ecoava pelo morro, quando a mãe em quase desespero saía em busca do filho. Com o tempo ela acostumou-se. Queria saber do filho, era olhar nas lajes das casas. - Sabiá tá na laje tia. Gostava das alturas e das vistas que tinha de lá. Não importava a casa, podia ser a sua, de um vizinho ou de algum outro conhecido. Quanto mais alto, melhor. Ia lá o Sabiá, olhar o mundo de cima. Ver pessoinhas virarem formigas debaixo dos seus olhos. Tinha vez que pensava em pisar, mas tinha medo de cair dali. Com o passar do tempo Sabiá ganhou tamanho, mas não perdeu o costume. Já trocava a escola pelas lajes, e ali ficava dias inteiros dando bodocada em passarinho. Mais um tempo e a pontaria afinou-se de tal jeito que era só escolher o bicho, apontar e pegar a caça. O garoto ganhava confiança e perdia o medo das formigas. Descobria que, dali, fazia o que quisesse com elas. - Desce daí menino e vai prá escola. Não adiantava a mãe gritar. Não descia e não ia. Tanto não foi que ela largou mão, e ele acabou largando a escola de vez. Cresceu outro tanto. Continuava nas lajes, mas agora de revólver na mão. Ganhou a confiança dos donos do morro. Ninguém sabia ver o mundo ali de cima como Sabiá. Ele via como ninguém, distinguia formigas dos inimigos, e dali continuava bodocando, agora como gente grande. Tanta bodocada ganhou fama. Sabiá deixou de ser apelido, virou sobrenome e codinome em jornal. Ainda o chamavam de Valterson, mas já era o vulgo. Não sabia ler direito, mas achava bonito, ver seu nome dia sim dia não escrito por ali. - Olha mãe, os bacanas me conhecem. Nas lajes, o Sabiá que não estudou fazia escola. Matilhas de garotos enchiam os telhados do morro. Todos de bodoque na mão, procurando passarinho. Todos sonhando crescer para acertar as formigas lá de baixo. Sabiá se enchia de orgulho e de segurança. Mais um tempo, passou a acreditar que era mesmo pássaro, que tinha asas e que seu ninho se estendia para além das lajes do favela, ultrapassava o morro e ganhava a cidade. A cidade também era sua, as formigas eram suas, e tudo o que elas carregavam naquele vai e vem de todo dia era seu. Acreditou nisso como os pássaros acreditam que os céus são seus. Um dia achou de voar para além do morro, queria ver suas terras, suas gentes. - Vou lá embaixo pegar o que é meu. A mãe de tanto rezar já não falava mais. Entregou a alma de seu Sabiá para o céu e viu o rapaz voar para o que dizia ser seu. Foi a última vez que olhou o rosto do filho. Sabiá esqueceu que, fora do morro, virava formiga. No dia seguinte estampava os jornais dos bacanas, carregando nas costas todas as bodocadas que distribuiu um dia. |
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