Atualização 062 - EM CIMA DO TELHADO
BIOGRAFIA
POR SOBRE OS TELHADOS DE CORUMBÁ, VI O PANTANAL
Gil Cordeiro Dias Ferreira

Corumbá, Estado do Pantanal 

Segunda quinzena de setembro de 2028

Amanhecer de um sábado quente

Ela abriu, sucessiva e vagarosamente, as janelas da suite e do salão. Um apartamento alto, em prédio novo, no trecho mais residencial da Avenida General Rondon, que margeia a alta barranca do Rio Paraguai. Seis da manhã. A claridade, como sempre, já era muito forte, amplificada pelos reflexos do sol no calcáreo que compõe o solo de Corumbá - por isso mesmo chamada "Cidade Branca" - e que, não efetuando trocas de calor com o meio-ambiente, restitui a este o que dele recebe, assim preservando a folclórica fama do brutal calor corumbaense; ou ao invés, se sobrevém a "friagem andina", trazida pelo vento sul, as mesmas características termodinâmicas provocam quedas de temperatura brutais, em curtíssimos intervalos de tempo; e mais - de dezembro a março, quando dos fortes temporais pantaneiros, poucos minutos após cada um deles, por força da alta permeabilidade do solo, tudo está seco novamente, e o calor retorna mais forte. Estranho Pantanal... Mutante, misterioso, intrigante, exótico, belo, selvagem, desafiador..... Ora tórrido, ora gélido..... Ora selva úmida, ora árido deserto...... Como suas fauna e flora..... Como seus habitantes..... Como, talvez..... Ela !

Ela respirou o ar puro e fresco da manhã. Fixou a vista no meandro acentuado do Paraguai, pouco acima da tomada d'água. Garças, tuiuiús, colhereiros, biguás e piriritas sobrevoavam as águas tranqüilas, em busca de peixes, que, a seu turno, por certo já teriam se alimentado de outros menores, numa multissecular preservação da cadeia ecológica, regida pela Seleção Natural, que o homem tenta, mas não consegue destruir - no máximo, destrói a si mesmo. Um movimento rápido das águas denunciou um bando de ariranhas, a fazer o mesmo, enquanto, na margem oposta à cidade, capivaras corriam, assustadas talvez com os jacarés que as observavam, prontos a lançar-lhes o bote. Um balseiro descia o Paraguai, coberto por camalotes. À distância, a bordo de suas voadeiras, fundeadas desde bem mais cedo, pescadores lançavam suas redes e anzóis; outras já retornavam ao porto, trazendo os pintados, pacus, dourados, piranhas e bagres que a população ribeirinha humilde aguardava, em parte para aliviar a fome, em parte para revender o pescado. "Tudo como sempre", pensou ela. Mas o silêncio do amanhecer, interrompido apenas, vez por outra, pelo alarido suave, quase musical, dos irracionais, começava a ser quebrado pelos irritantes ruídos do progresso dos racionais: motores, buzinas, ambulantes, bêbados noctívagos em fim de festa, rádios em volume elevado, veículos promocionais com seus alto-falantes, um estridente abrir de portas metálicas das lojas...

Um aroma delicioso de café veio da cozinha, misturando-se aos odores que a torrefação já lançava por todo o centro comercial. O silvo do microondas indicava que as chipas já estavam aquecidas. Em poucos instantes, Edson, o marido, lhe traria na bandeja aquela refeição, que embora simples e nada nutritiva, constituía há anos seu quebra-torto, e, ao menos em sua crença, ajudava-a a manter as formas perfeitas. As formas...Instintivamente ela se mirou no espelho oval da sala, à distância, de maneira a que todo o corpo fosse refletido. Aos quase 53 anos, que completaria em dezembro - Sagitariana ! - , pouco mudara, desde a juventude. A harmonia daquele corpo de estatura miúda parecia imune ao tempo: as coxas ainda sensualmente grossas; as pernas permaneciam admiravelmente bem torneadas; os glúteos, que jamais haviam conhecido flacidez, exibiam sua curvatura pronunciada e provocante, que se estreitava suavemente em direção à cintura ainda afilada, e se estendia com precisão para os lados, compondo as ancas generosas. Ela olhou languidamente para os braços finos, as mãos delicadas, as unhas bem cuidadas; ergueu-os e soltou o coque, deixando cair sobre os ombros a cabeleira negra e encaracolada - ainda não estava grisalha; afastou da face alguns fios longos, que escondiam os olhos amendoados, como que asiáticos - única herança dos ancestrais quíchuas e incas de seu pai, boliviano cruzenho. O resto era da mãe, brasileira, corumbaense, "pantaneira mesmo", "bugre". Um fio aderira à boca delicada, de lábios finos; outro ficara preso ao sinal preto na maçã do rosto direita - sua marca registrada, seu charme; ela afastou a ambos, sentou-se na poltrona macia, de frente para a janela, semicerrou os olhos e deixou que os raios do sol beijassem seu rosto ainda meio infantil. 

- "Rainha" !

Era Edson, com a bandeja. Ela demorou ainda um pouco a se virar para ele. Visualizou-o em pensamento. Pouco mais velho que ela, bem mais alto, já não tão magro como no começo. O começo.....Como fora difícil, trinta e seis anos antes. Com apenas um ano de casados, nascera Eduardo, o único filho, que já lhes dera três netos. Vida dura, residindo com a sogra. Edson trabalhava onde e quando possível e estudava à noite. Mas afinal concluíra a Faculdade, tornara-se Engenheiro Florestal, prestara concurso público, e agora, funcionário de alto nível da EMBRAPA, estava próximo da aposentadoria. Ela fôra camareira e governanta, antes de ingressar numa empresa prestadora de serviços de limpeza, cujo proprietário, Jeremias, a tinha como filha. Competente, progredira em seu ofício. A empresa prosperara e, anos mais tarde, transferira sua sede para Campo Grande, mas deixara uma filial em Corumbá, da qual, em pouco tempo, ela se tornara gerente. Após o falecimento de Jeremias, a esposa deste, não desejando mais retornar à cidade, vendera-lhe as quotas da sociedade, e ela se tornara microempresária. 

- "Rainha ! Acorda ! "

Ela interrompeu suas divagações. Voltou-se para ele, fitando-o com ternura. Quantas diferenças entre ambos...Ela ainda cultivando velhos costumes, desinteressada de inovações tecnológicas, exceto a TV tridimensional e os micro-vídeodiscos, particularmente os que reproduziam antigos sucessos musicais do final da década de 1990. Ele, apreciador e usuário incondicional de todas as novidades tecnológicas que o engenho humano produzisse. Entendiam-se bem, ainda assim. Vez por outra, ao vê-la em silêncio, meditativa, chamava-a de "Rainha", baseando-se na explicação sumária e pouco convincente que ela lhe dera, muitos anos antes, sobre episódio nebuloso de certo período de sua vida, que despertara nele suspeitas, nunca confirmadas, de infidelidade. Episódio que ela guardara consigo mesma; que jamais revelara a quem quer que fôsse; mas que não conseguira nunca esquecer.

Ele se sentou na poltrona à frente da dela. Pousou a bandeja sobre a mesinha colocada entre ambos. Não tinham muita fome. O jantar da véspera fôra farto. Como quase todas as sextas- feiras, ao invés de cozinharem em casa, haviam preferido ir a um restaurante - dessa vez, por insistência de Edson, mas contra a vontade dela, no mais antigo e afamado da cidade, também na Avenida General Rondon. Nada a ver com a comida, por sinal ótima. Mas tudo a ver com a proprietária. A Sônia. Ah, a Sônia.....Sagitariana, também, aniversariando cinco dias antes dela, mas.....dez anos mais velha. Alta, espigada, ainda ostentando a excepcional beleza da juventude, a sensualidade provocante.....Sônia exalava sexo! E quantos homens ela havia enfeitiçado com seu charme.....Todavia, Edson jamais poderia saber os porquês de sua repelência àquela antiga dona de lanchonete, que progredira tanto. Já Sônia sabia muito bem as origens da inimizade cordial de ambas, daquele ódio mútuo e mudo, daquela sensação estranha de que nenhuma das duas, afinal, derrotara definitivamente a outra, na guerra surda travada três décadas antes, na disputa de uma mesma conquista..... Sônia sabia, ah, como sabia ! Ah, queódio daquele sorriso irônico, daquele ar de superioridade, ao vir à mesa cumprimentá-los..... Como se, ao se olharem, uma dissesse para a outra: "Eu sei; você sabe; eu sei que você sabe; você sabe que eu sei; eu sei que você sabe que eu sei; você sabe que eu sei que você sabe". Ah, Sônia, Sônia...Se você pudesse desaparecer..... 

-"Você está esquisita, hoje. Dor de cabeça ?"

Era Edson, de novo, tentando descobrir onde andavam os pensamentos dela. Mas antes que pudesse responder, uma campainha suave soou; era a impressora a laser, indicando que a recepção do "Diário de Corumbá - on line" havia se completado. Edson retirou o exemplar da máquina e começou a passar os olhos pelas manchetes da primeira página. O assunto do momento era o intenso programa de eventos comemorativos do 250º aniversário de Corumbá, a ser completado em 21 de setembro de 2028 - uma semana depois. A cidade já se antecipava ao ritmo frenético que a envolveria durante a grande festa. 

Um "ding-dong" ecoou. Agora era o videofone celular. A tela se iluminou rapidamente e ela pôde ver o rosto alegre e simpático de Lúcia, e ouvi-la bradar "Bom dia !" Lúcia.....A velha amiga Lúcia.....Negra, alta, belíssima, inteligente.....Há anos se envolvera com a política local. Nunca tentara cargos eletivos, por acreditar serem eles passageiros. Articuladora, esperta, até mesmo maquiavélica, sempre trabalhara nas sombras, assessorando políticos e perenizando-se na administração pública. A criação do Estado do Pantanal elevara seu nível de atuação de municipal a estadual. Um golpe de sorte que, associado à sua inegável competência, conduzira-a à situação de Secretária Estadual de Governo. Coordenadora dos festejos ! E Lúcia.....Bem, Lúcia participara indiretamente de tudo o que a Rainha pretendia manter sepultado. Sensível, arguta, persuasiva, observadora, irônica, sarcástica, malcriada, sempre com respostas imediatas para tudo - uma Virginiana típica - por várias vezes Lúcia desconfiara - mais do que Edson - de alguma coisa. E não economizara artimanhas para tentar descobrir o que ocorrera com a Rainha. Com o passar do tempo, aparentemente desviara sua atenção para outras coisas, mas, ainda que sem sabê-lo integralmente, participara do problema, embora não da solução. Lúcia.....Estava chegando aos cinqüenta, mas aparentava pouco mais de trinta.....A manipuladora de poderosos.....Lúcia, a esperteza em pessoa.....

- "Bom dia, Lúcia !" 

A Secretária parecia ansiosa para falar sobre as comemorações dos 250 anos, nas quais ela seria figura de destaque, ao lado do Governador, do Prefeito e de outras autoridades. Mas a Rainha já ouvira demais sobre isso. Sua empresa estava sobrecarregada de trabalho, por causa da festa. Parecia que todos os seus clientes haviam decidido, simultaneamente, reparar e embelezar sua residências e escritórios. Os e-mail e fac-símiles não paravam de chegar, solicitando seus serviços. Claro que isso era ótimo para o faturamento, mas ela tivera que contratar um número muito grande de ajudantes temporários, apenas para atender àquele repentino aumento de demanda. Coordenar tudo não era simples, e os custos eram altos. Os materiais que precisava comprar estavam escasseando na cidade e aumentando de preço. E num sábado de manhã, o que ela mais queria era sossego. Assim, enquanto Lúcia falava, ela simplesmente "viajou", recordando o quanto Corumbá progredira, apesar do fim da era da pecuária. 

Tudo começara, exatamente, naquele ano que ela queria esquecer - 1998 - quando o povo de Mato Grosso do Sul elegera um governo de esquerda, fortemente comprometido com as causas ecológicas e sociais e com a criação do Estado do Pantanal. E a administração fora tão boa, tão aplaudida pela população, que logo as Prefeituras de outros municípios foram sendo progressivamente conquistadas pela mesma coligação partidária, até que a divisão do antigo Estado se tornasse inevitável. A conscientização, pelo povo, da imperiosidade da preservação ambiental, assumira proporções jamais vistas, e o Pantanal, finalmente, deixara de sofrer as ações predatórias de que fôra vítima por muito tempo. Paralelamente, um forte esquema de repressão ao tráfico de entorpecentes havia sido desencadeado pelo Governo Federal, com engajamento decisivo das Forças Armadas, cujos contingentes em Corumbá, que sempre haviam sido vultosos, desde a guerra contra o Paraguai, no século XIX, haviam aumentado ainda mais. Navios de guerra, aeronaves de combate e tropas do Exército, em quantidades consideráveis, eram agora parte do cotidiano local. O mesmo ocorrera com as Polícias Federal e Estadual e a Guarda Municipal, o que contribuíra expressivamente para a redução, a níveis toleráveis, da criminalidade que, trinta anos antes, estava conduzindo a cidade ao caos social. Outra medida de grande alcance econômico e social fôra a legalização do jogo, que multiplicara muitas vezes tanto o já pujante turismo ali desenvolvido, quanto a arrecadação de impostos e a oferta de empregos. As conseqüências na qualidade de vida haviam sido consideráveis. A cidade se expandira em várias direções. O asfalto recobria agora mais de 90% da área urbana. A construção civil tivera um impulso fantástico, fazendo despontar arranha-céus, condomínios, mansões, hotéis, shopping centers, hospitais, pontes, túneis e viadutos. O gasoduto Bolívia -Brasil favorecera a construção de uma imensa usina termoelétrica, conduzindo a níveis muito elevados a oferta de energia. O antigo Distrito Industrial, ao longo da estrada Corumbá- Ladário, estagnado por décadas, renascera, trazendo de volta a Fiação, a Siderurgia, a Ferro-Ligas e várias outras indústrias, permitindo aos corumbaenses a alegria de reviverem o período áureo dos primeiros anos do século XX, quando a cidade, graças a seu porto, havia sido um grande entreposto de comércio internacional. Os transportes haviam se sofisticado: a ferrovia Noroeste, até Bauru, fôra reativada, tanto como atrativo turístico quanto pelo aumento das necessidades de abastecimento; a fabricação de veículos elétricos e a gás natural, tanto particulares de passeio quanto coletivos, pouco ou nada poluidores, havia se tornado economicamente viável no país, de sorte que Corumbá dispunha agora, dentre outros meios, de um adequado metrô de superfície, que facilitava a circulação pelo centro e subúrbios e ainda se estendia, para Leste, até o município adjacente de Ladário, e, para Oeste, por meio de um monotrilho acionado por levitação magnética, até a vizinha Bolívia. Os ônibus elétricos faziam as integrações urbanas.

O país fronteiro era um caso à parte. A partir da década de 1980, seus municípios fronteiriços de Quijarro e Puerto Suarez haviam se desenvolvido extraordinariamente, em particular desde que ali fôra estabelecida uma Zona de Livre Comércio, na qual haviam florescido centenas de lojas revendedoras de artigos importados, isentos de impostos - muitas delas de propriedade de brasileiros. Houve várias tentativas de fazer o mesmo em Corumbá, mas imperativos de ordem diplomática, vindos de Brasília, não permitiram que essa pretensão de alguns próceres locais se concretizasse, pois isso acarretaria, em tese, a ruína econômica daquela região boliviana, atingindo até mesmo uma de suas mais importantes cidades - Santa Cruz de la Sierra - com reflexos altamente negativos para a atuação brasileira no Mercosul, do qual a Bolívia passara a fazer parte. Mas o mercado sempre se ajusta aos ditames político-burocráticos; assim, a conseqüência fôra que, explorando as brechas das políticas cambiais de ambos os países, um número cada vez maior de brasileiros se estabelecera comercialmente na Bolívia, e vice-versa, já que assim todos ganhariam. Com isso, o comércio atacadista e varejista, em ambos os lados da fronteira, assumira proporções consideráveis, contribuindo muito para o aprimoramento da qualidade de vida de todos. 

O transporte fluvial renascera, com a exploração ordenada da hidrovia Paraná-Paraguai. As linhas fluviais de passageiros, de Montevidéu e Buenos Ayres até Cuiabá, populares no início do século XX, foram reativadas, incrementando o turismo ecológico e pesqueiro, ao lado de outras, comerciais, que escoavam a produção de grãos cultivados em larga escala no Estado de Mato Grosso. Uma das conseqüências fôra a excepcional ampliação do porto de Corumbá, que por décadas servira apenas de ancoradouro para pequenos barcos de turismo, e agora recebia navios de grande porte, tanto cargueiros quanto "liners", além das belonaves bolivianas, paraguaias, argentinas e uruguaias, constantemente adestrando-se em Operações Ribeirinhas com a Marinha do Brasil. E durante as cheias, quando alguns navios, por serem de grande altura, não conseguiam passar sob as pontes que cruzam o Rio Paraguai no Morrinho e em Porto Esperança, as operações de carga e descarga se processavam neste último, antes apenas um singelo terminal de minérios, mas agora verdadeiro pólo de desenvolvimento, onde florescera novo conglomerado urbano. 

O aeroporto de Corumbá fôra ampliado, e podia receber agora aeronaves portentosas, de última geração. Várias companhias, atraídas principalmente pela crescente atividade turística, haviam criado linhas para aquela região, com conexões para todo o Brasil, Américas e Europa.

A rodovia Transpantaneira, ligando Corumbá a Cuiabá, fôra finalmente concluída, reduzindo em muitas horas os deslocamentos entre essas duas cidades, que, antes, só se podiam processar através de Campo Grande, o que aumentava o trajeto em mais de 500 quilômetros. Isso facilitara muito o trabalho dos caminhoneiros, que por ali iniciaram uma nova rota de interiorização da atividade econômica no Brasil, como vinham fazendo há muito, particularmente desde a fundação de Brasília, quase setenta anos antes.

Mas nem tudo eram flores. As expectativas de enriquecimento rápido, advindas da grande propaganda do que ocorria no Pantanal - "o novo Eldorado" - haviam atraído também uma legião de aventureiros de múltiplas nacionalidades, que, não realizando seus sonhos, passaram a formar um considerável contingente de desempregados, vivendo à míngua em favelas nas periferias de Corumbá e Ladário, provocando novamente um aumento nos índices de mendicância, escassez de habitações, necessidades de saneamento básico, violência urbana, poluição, conflitos pela posse de terras, mortalidade infantil e proliferação de doenças infecto-contagiosas. Os Governos estadual e municipal, bastante comprometidos com as causas sociais, e fortalecidos pela alta arrecadação proveniente do jogo e do turismo, haviam adotado fortes medidas de combate a esses problemas, mas nem sempre haviam sido bem sucedidos: a corrupção, a demagogia, o nepotismo, o "caciquismo", os "lobbies" e outros vícios ancestrais do processo político brasileiro acabavam promovendo desvios de recursos e fazendo naufragar vários projetos, quase sempre bem intencionados, mas ingênuos e utópicos, de muitos dirigentes locais. Por outro lado, se o jogo trouxera empregos e impostos, também favorecera o afrouxamento moral. A prostituição de luxo, estimulada no âmbito dos cassinos, e praticada por jovens vindas de todas as regiões do país, que já existia em Corumbá havia muito, por causa do turismo pesqueiro, atingia agora níveis antes inimagináveis. É bem verdade que o consumo de tóxicos e a proliferação da AIDS haviam sido sensivelmente reduzidos, pelo terror que, desde o final do século XX, se espalhara em todo o mundo a respeito das conseqüências desses dois fantasmas. Em contrapartida, o alcoolismo e a jogatina assumiram proporções gigantescas, não raro levando as vítimas desses vícios ao roubo, agressões, homicídios e suicídios. 

Esse quadro conduzira ao aparecimento de um número incontável de "igrejas" e organizações ditas "assistenciais" de toda ordem, que, como ponto comum, autoproclamavam-se "detentoras da verdade", prenunciando para breve o final dos tempos, quando, segundo antigas profecias de Dom Bosco - sempre pregadas, desde que os Salesianos ali haviam se instalado, no século XVIII - o Pantanal seria o único lugar do mundo a ser preservado, como um novo Jardim do Éden. E os adeptos dessas prédicas aumentavam cada vez mais, organizando atos de protesto contra a luxúria que, em seu entender, imperava na região, como uma filha bastarda do elevado desenvolvimento econômico recente.

Não era muito fácil, portanto, a tarefa de Lúcia, a Secretária de Governo. Paralelamente às manifestações de ufanismo desenvolvimentista que fatalmente ocorreriam por ocasião dos 250 anos da cidade, conduzidas pelo estamento político, outras, de protestos fundamentados em crenças aparentemente religiosas, certamente teriam lugar, em oposição às primeiras. Caberia a ela tentar harmonizar esses interesses conflitantes, de maneira a não pôr em jogo o destino político de seus empregadores.

- "Rainha! Acorda!" 

Era Lúcia, percebendo que sua interlocutora não captara uma só palavra da minuciosa descrição que ela fizera do programa de festejos. Por isso, para irritá-la, chamara-a de "Rainha". E se ainda não conhecia exatamente os porquês desse apelido, continuava a tentar descobri-los....

- "Quer saber os nomes da última confirmação de presenças que recebi ainda agora ?" 

A Rainha deu de ombros, sem se importar. "Quem poderia ser?"

- "São sete velhinhos. Cinco já passaram dos oitenta, dois andam pelos setenta. Vão ficar no Hotel Nacional...." 

A Rainha, por um instante, interrompeu suas divagações. Uma sensação de frio começou a percorrer sua espinha. Ela se inclinou mais para o videofone. Lúcia percebeu, e provocou a amiga:

- "Interessou-se ?" E começou a declinar os nomes dos convivas, vagarosamente..... 

Era demais. A Rainha, bem a seu jeito estabanado, desligou abruptamente o aparelho. Os cabelos longos - a "crina do centauro", marca dos Sagitarianos - caíram sobre seu rosto, fazendo-a assumir por um átimo aquela feição sensual que tanto encantara alguém, havia muito tempo...Ofegava, como desde criança, quando ficava nervosa. Correu para a suite. Trancou-se. Não queria que Edson visse suas lágrimas. Deitou-se, semicerrou os olhos e deixou que antigas lembranças por fim aflorassem.....

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor