Corumbá, Estado do Pantanal
Segunda quinzena de setembro de 2028
Amanhecer de um sábado quente
Ela abriu, sucessiva e vagarosamente, as janelas da suite
e do salão. Um apartamento alto, em prédio novo, no trecho mais residencial
da Avenida General Rondon, que margeia a alta barranca do Rio Paraguai.
Seis da manhã. A claridade, como sempre, já era muito forte, amplificada
pelos reflexos do sol no calcáreo que compõe o solo de Corumbá - por isso
mesmo chamada "Cidade Branca" - e que, não efetuando trocas de calor com
o meio-ambiente, restitui a este o que dele recebe, assim preservando
a folclórica fama do brutal calor corumbaense; ou ao invés, se sobrevém
a "friagem andina", trazida pelo vento sul, as mesmas características
termodinâmicas provocam quedas de temperatura brutais, em curtíssimos
intervalos de tempo; e mais - de dezembro a março, quando dos fortes temporais
pantaneiros, poucos minutos após cada um deles, por força da alta permeabilidade
do solo, tudo está seco novamente, e o calor retorna mais forte. Estranho
Pantanal... Mutante, misterioso, intrigante, exótico, belo, selvagem,
desafiador..... Ora tórrido, ora gélido..... Ora selva úmida, ora árido
deserto...... Como suas fauna e flora..... Como seus habitantes..... Como,
talvez..... Ela !
Ela respirou o ar puro e fresco da manhã. Fixou a vista
no meandro acentuado do Paraguai, pouco acima da tomada d'água. Garças,
tuiuiús, colhereiros, biguás e piriritas sobrevoavam as águas tranqüilas,
em busca de peixes, que, a seu turno, por certo já teriam se alimentado
de outros menores, numa multissecular preservação da cadeia ecológica,
regida pela Seleção Natural, que o homem tenta, mas não consegue destruir
- no máximo, destrói a si mesmo. Um movimento rápido das águas denunciou
um bando de ariranhas, a fazer o mesmo, enquanto, na margem oposta à cidade,
capivaras corriam, assustadas talvez com os jacarés que as observavam,
prontos a lançar-lhes o bote. Um balseiro descia o Paraguai, coberto por
camalotes. À distância, a bordo de suas voadeiras, fundeadas desde bem
mais cedo, pescadores lançavam suas redes e anzóis; outras já retornavam
ao porto, trazendo os pintados, pacus, dourados, piranhas e bagres que
a população ribeirinha humilde aguardava, em parte para aliviar a fome,
em parte para revender o pescado. "Tudo como sempre", pensou ela. Mas
o silêncio do amanhecer, interrompido apenas, vez por outra, pelo alarido
suave, quase musical, dos irracionais, começava a ser quebrado pelos irritantes
ruídos do progresso dos racionais: motores, buzinas, ambulantes, bêbados
noctívagos em fim de festa, rádios em volume elevado, veículos promocionais
com seus alto-falantes, um estridente abrir de portas metálicas das lojas...
Um aroma delicioso de café veio da cozinha, misturando-se aos odores que
a torrefação já lançava por todo o centro comercial. O silvo do microondas
indicava que as chipas já estavam aquecidas. Em poucos instantes, Edson,
o marido, lhe traria na bandeja aquela refeição, que embora simples e
nada nutritiva, constituía há anos seu quebra-torto, e, ao menos em sua
crença, ajudava-a a manter as formas perfeitas. As formas...Instintivamente
ela se mirou no espelho oval da sala, à distância, de maneira a que todo
o corpo fosse refletido. Aos quase 53 anos, que completaria em dezembro
- Sagitariana ! - , pouco mudara, desde a juventude. A harmonia daquele
corpo de estatura miúda parecia imune ao tempo: as coxas ainda sensualmente
grossas; as pernas permaneciam admiravelmente bem torneadas; os glúteos,
que jamais haviam conhecido flacidez, exibiam sua curvatura pronunciada
e provocante, que se estreitava suavemente em direção à cintura ainda
afilada, e se estendia com precisão para os lados, compondo as ancas generosas.
Ela olhou languidamente para os braços finos, as mãos delicadas,
as unhas bem cuidadas; ergueu-os e soltou o coque, deixando cair sobre
os ombros a cabeleira negra e encaracolada - ainda não estava grisalha;
afastou da face alguns fios longos, que escondiam os olhos amendoados,
como que asiáticos - única herança dos ancestrais quíchuas e incas de
seu pai, boliviano cruzenho. O resto era da mãe, brasileira, corumbaense,
"pantaneira mesmo", "bugre". Um fio aderira à boca delicada, de lábios
finos; outro ficara preso ao sinal preto na maçã do rosto direita - sua
marca registrada, seu charme; ela afastou a ambos, sentou-se na poltrona
macia, de frente para a janela, semicerrou os olhos e deixou que os raios
do sol beijassem seu rosto ainda meio infantil.
- "Rainha" !
Era Edson, com a bandeja. Ela demorou ainda um pouco a
se virar para ele. Visualizou-o em pensamento. Pouco mais velho que ela,
bem mais alto, já não tão magro como no começo. O começo.....Como fora
difícil, trinta e seis anos antes. Com apenas um ano de casados, nascera
Eduardo, o único filho, que já lhes dera três netos. Vida dura, residindo
com a sogra. Edson trabalhava onde e quando possível e estudava à noite.
Mas afinal concluíra a Faculdade, tornara-se Engenheiro Florestal, prestara
concurso público, e agora, funcionário de alto nível da EMBRAPA, estava
próximo da aposentadoria. Ela fôra camareira e governanta,
antes de ingressar numa empresa prestadora de serviços de limpeza, cujo
proprietário, Jeremias, a tinha como filha. Competente, progredira em
seu ofício. A empresa prosperara e, anos mais tarde, transferira sua sede
para Campo Grande, mas deixara uma filial em Corumbá, da qual, em pouco
tempo, ela se tornara gerente. Após o falecimento de Jeremias, a esposa
deste, não desejando mais retornar à cidade, vendera-lhe as quotas da
sociedade, e ela se tornara microempresária.
- "Rainha ! Acorda ! "
Ela interrompeu suas divagações. Voltou-se para ele, fitando-o
com ternura. Quantas diferenças entre ambos...Ela ainda
cultivando velhos costumes, desinteressada de inovações tecnológicas,
exceto a TV tridimensional e os micro-vídeodiscos, particularmente os
que reproduziam antigos sucessos musicais do final da década de 1990.
Ele, apreciador e usuário incondicional de todas as novidades tecnológicas
que o engenho humano produzisse. Entendiam-se bem, ainda assim. Vez por
outra, ao vê-la em silêncio, meditativa, chamava-a de "Rainha",
baseando-se na explicação sumária e pouco convincente que ela lhe dera,
muitos anos antes, sobre episódio nebuloso de certo período de sua vida,
que despertara nele suspeitas, nunca confirmadas, de infidelidade. Episódio
que ela guardara consigo mesma; que jamais revelara a quem quer que fôsse;
mas que não conseguira nunca esquecer.
Ele se sentou na poltrona à frente da dela. Pousou a bandeja sobre a mesinha
colocada entre ambos. Não tinham muita fome. O jantar da véspera fôra
farto. Como quase todas as sextas- feiras, ao invés de cozinharem em casa,
haviam preferido ir a um restaurante - dessa vez, por insistência de Edson,
mas contra a vontade dela, no mais antigo e afamado da cidade, também
na Avenida General Rondon. Nada a ver com a comida, por sinal ótima. Mas
tudo a ver com a proprietária. A Sônia. Ah, a Sônia.....Sagitariana, também,
aniversariando cinco dias antes dela, mas.....dez anos mais velha. Alta,
espigada, ainda ostentando a excepcional beleza da juventude, a sensualidade
provocante.....Sônia exalava sexo! E quantos homens ela havia enfeitiçado
com seu charme.....Todavia, Edson jamais poderia saber os porquês de sua
repelência àquela antiga dona de lanchonete, que progredira tanto. Já
Sônia sabia muito bem as origens da inimizade cordial de ambas, daquele
ódio mútuo e mudo, daquela sensação estranha de que nenhuma das duas,
afinal, derrotara definitivamente a outra, na guerra surda travada três
décadas antes, na disputa de uma mesma conquista..... Sônia sabia, ah,
como sabia ! Ah, queódio daquele sorriso irônico, daquele ar de superioridade,
ao vir à mesa cumprimentá-los..... Como se, ao se olharem, uma dissesse
para a outra: "Eu sei; você sabe; eu sei que você sabe; você sabe que
eu sei; eu sei que você sabe que eu sei; você sabe que eu sei que você
sabe". Ah, Sônia, Sônia...Se você pudesse desaparecer.....
-"Você está esquisita, hoje. Dor de cabeça ?"
Era Edson, de novo, tentando descobrir onde andavam os pensamentos dela.
Mas antes que pudesse responder, uma campainha suave soou; era a impressora
a laser, indicando que a recepção do "Diário de Corumbá - on line" havia
se completado. Edson retirou o exemplar da máquina e começou a passar
os olhos pelas manchetes da primeira página. O assunto do momento era
o intenso programa de eventos comemorativos do 250º aniversário de Corumbá,
a ser completado em 21 de setembro de 2028 - uma semana depois. A cidade
já se antecipava ao ritmo frenético que a envolveria durante a grande
festa.
Um "ding-dong" ecoou. Agora era o videofone celular. A tela se iluminou
rapidamente e ela pôde ver o rosto alegre e simpático de Lúcia, e ouvi-la
bradar "Bom dia !" Lúcia.....A velha amiga Lúcia.....Negra, alta, belíssima,
inteligente.....Há anos se envolvera com a política local. Nunca tentara
cargos eletivos, por acreditar serem eles passageiros. Articuladora, esperta,
até mesmo maquiavélica, sempre trabalhara nas sombras, assessorando políticos
e perenizando-se na administração pública. A criação do Estado do Pantanal
elevara seu nível de atuação de municipal a estadual. Um golpe de sorte
que, associado à sua inegável competência, conduzira-a à situação de Secretária
Estadual de Governo. Coordenadora dos festejos ! E Lúcia.....Bem, Lúcia
participara indiretamente de tudo o que a Rainha pretendia
manter sepultado. Sensível, arguta, persuasiva, observadora, irônica,
sarcástica, malcriada, sempre com respostas imediatas para tudo - uma
Virginiana típica - por várias vezes Lúcia desconfiara - mais do que Edson
- de alguma coisa. E não economizara artimanhas para tentar descobrir
o que ocorrera com a Rainha. Com o passar do tempo, aparentemente
desviara sua atenção para outras coisas, mas, ainda que sem sabê-lo integralmente,
participara do problema, embora não da solução. Lúcia.....Estava chegando
aos cinqüenta, mas aparentava pouco mais de trinta.....A manipuladora
de poderosos.....Lúcia, a esperteza em pessoa.....
- "Bom dia, Lúcia !"
A Secretária parecia ansiosa para falar sobre as comemorações dos 250
anos, nas quais ela seria figura de destaque, ao lado do Governador, do
Prefeito e de outras autoridades. Mas a Rainha já ouvira
demais sobre isso. Sua empresa estava sobrecarregada de trabalho, por
causa da festa. Parecia que todos os seus clientes haviam decidido, simultaneamente,
reparar e embelezar sua residências e escritórios. Os e-mail e fac-símiles
não paravam de chegar, solicitando seus serviços. Claro que isso era ótimo
para o faturamento, mas ela tivera que contratar um número muito grande
de ajudantes temporários, apenas para atender àquele repentino aumento
de demanda. Coordenar tudo não era simples, e os custos eram altos. Os
materiais que precisava comprar estavam escasseando na cidade e aumentando
de preço. E num sábado de manhã, o que ela mais queria era sossego. Assim,
enquanto Lúcia falava, ela simplesmente "viajou", recordando o quanto
Corumbá progredira, apesar do fim da era da pecuária.
Tudo começara, exatamente, naquele ano que ela queria esquecer - 1998
- quando o povo de Mato Grosso do Sul elegera um governo de esquerda,
fortemente comprometido com as causas ecológicas e sociais e com a criação
do Estado do Pantanal. E a administração fora tão boa, tão aplaudida pela
população, que logo as Prefeituras de outros municípios foram sendo progressivamente
conquistadas pela mesma coligação partidária, até que a divisão do antigo
Estado se tornasse inevitável. A conscientização, pelo povo, da imperiosidade
da preservação ambiental, assumira proporções jamais vistas, e o Pantanal,
finalmente, deixara de sofrer as ações predatórias de que fôra vítima
por muito tempo. Paralelamente, um forte esquema de repressão ao tráfico
de entorpecentes havia sido desencadeado pelo Governo Federal, com engajamento
decisivo das Forças Armadas, cujos contingentes em Corumbá, que sempre
haviam sido vultosos, desde a guerra contra o Paraguai, no século XIX,
haviam aumentado ainda mais. Navios de guerra, aeronaves de combate e
tropas do Exército, em quantidades consideráveis, eram agora parte do
cotidiano local. O mesmo ocorrera com as Polícias Federal e Estadual e
a Guarda Municipal, o que contribuíra expressivamente para a redução,
a níveis toleráveis, da criminalidade que, trinta anos antes, estava conduzindo
a cidade ao caos social. Outra medida de grande alcance econômico e social
fôra a legalização do jogo, que multiplicara muitas vezes tanto o já pujante
turismo ali desenvolvido, quanto a arrecadação de impostos e a oferta
de empregos. As conseqüências na qualidade de vida haviam sido consideráveis.
A cidade se expandira em várias direções. O asfalto recobria agora mais
de 90% da área urbana. A construção civil tivera um impulso fantástico,
fazendo despontar arranha-céus, condomínios, mansões, hotéis, shopping
centers, hospitais, pontes, túneis e viadutos. O gasoduto Bolívia -Brasil
favorecera a construção de uma imensa usina termoelétrica, conduzindo
a níveis muito elevados a oferta de energia. O antigo Distrito Industrial,
ao longo da estrada Corumbá- Ladário, estagnado por décadas, renascera,
trazendo de volta a Fiação, a Siderurgia, a Ferro-Ligas e várias outras
indústrias, permitindo aos corumbaenses a alegria de reviverem o período
áureo dos primeiros anos do século XX, quando a cidade, graças a seu porto,
havia sido um grande entreposto de comércio internacional. Os transportes
haviam se sofisticado: a ferrovia Noroeste, até Bauru, fôra reativada,
tanto como atrativo turístico quanto pelo aumento das necessidades de
abastecimento; a fabricação de veículos elétricos e a gás natural, tanto
particulares de passeio quanto coletivos, pouco ou nada poluidores, havia
se tornado economicamente viável no país, de sorte que Corumbá dispunha
agora, dentre outros meios, de um adequado metrô de superfície, que facilitava
a circulação pelo centro e subúrbios e ainda se estendia, para Leste,
até o município adjacente de Ladário, e, para Oeste, por meio de um monotrilho
acionado por levitação magnética, até a vizinha Bolívia. Os ônibus elétricos
faziam as integrações urbanas.
O país fronteiro era um caso à parte. A partir da década de 1980, seus
municípios fronteiriços de Quijarro e Puerto Suarez haviam se desenvolvido
extraordinariamente, em particular desde que ali fôra estabelecida uma
Zona de Livre Comércio, na qual haviam florescido centenas de lojas revendedoras
de artigos importados, isentos de impostos - muitas delas de propriedade
de brasileiros. Houve várias tentativas de fazer o mesmo em Corumbá, mas
imperativos de ordem diplomática, vindos de Brasília, não permitiram que
essa pretensão de alguns próceres locais se concretizasse, pois isso acarretaria,
em tese, a ruína econômica daquela região boliviana, atingindo até mesmo
uma de suas mais importantes cidades - Santa Cruz de la Sierra - com reflexos
altamente negativos para a atuação brasileira no Mercosul, do qual a Bolívia
passara a fazer parte. Mas o mercado sempre se ajusta aos ditames político-burocráticos;
assim, a conseqüência fôra que, explorando as brechas das políticas cambiais
de ambos os países, um número cada vez maior de brasileiros se estabelecera
comercialmente na Bolívia, e vice-versa, já que assim todos ganhariam.
Com isso, o comércio atacadista e varejista, em ambos os lados da fronteira,
assumira proporções consideráveis, contribuindo muito para o aprimoramento
da qualidade de vida de todos.
O transporte fluvial renascera, com a exploração ordenada da hidrovia
Paraná-Paraguai. As linhas fluviais de passageiros, de Montevidéu e Buenos
Ayres até Cuiabá, populares no início do século XX, foram reativadas,
incrementando o turismo ecológico e pesqueiro, ao lado de outras, comerciais,
que escoavam a produção de grãos cultivados em larga escala no Estado
de Mato Grosso. Uma das conseqüências fôra a excepcional ampliação do
porto de Corumbá, que por décadas servira apenas de ancoradouro para pequenos
barcos de turismo, e agora recebia navios de grande porte, tanto cargueiros
quanto "liners", além das belonaves bolivianas, paraguaias, argentinas
e uruguaias, constantemente adestrando-se em Operações Ribeirinhas com
a Marinha do Brasil. E durante as cheias, quando alguns navios, por serem
de grande altura, não conseguiam passar sob as pontes que cruzam o Rio
Paraguai no Morrinho e em Porto Esperança, as operações de carga e descarga
se processavam neste último, antes apenas um singelo terminal de minérios,
mas agora verdadeiro pólo de desenvolvimento, onde florescera novo conglomerado
urbano.
O aeroporto de Corumbá fôra ampliado, e podia receber agora aeronaves
portentosas, de última geração. Várias companhias, atraídas principalmente
pela crescente atividade turística, haviam criado linhas para aquela região,
com conexões para todo o Brasil, Américas e Europa.
A rodovia Transpantaneira, ligando Corumbá a Cuiabá, fôra finalmente concluída,
reduzindo em muitas horas os deslocamentos entre essas duas cidades, que,
antes, só se podiam processar através de Campo Grande, o que aumentava
o trajeto em mais de 500 quilômetros. Isso facilitara muito o trabalho
dos caminhoneiros, que por ali iniciaram uma nova rota de interiorização
da atividade econômica no Brasil, como vinham fazendo há muito, particularmente
desde a fundação de Brasília, quase setenta anos antes.
Mas nem tudo eram flores. As expectativas de enriquecimento rápido, advindas
da grande propaganda do que ocorria no Pantanal - "o novo Eldorado" -
haviam atraído também uma legião de aventureiros de múltiplas nacionalidades,
que, não realizando seus sonhos, passaram a formar um considerável contingente
de desempregados, vivendo à míngua em favelas nas periferias de Corumbá
e Ladário, provocando novamente um aumento nos índices de mendicância,
escassez de habitações, necessidades de saneamento básico, violência urbana,
poluição, conflitos pela posse de terras, mortalidade infantil e proliferação
de doenças infecto-contagiosas. Os Governos estadual e municipal, bastante
comprometidos com as causas sociais, e fortalecidos pela alta arrecadação
proveniente do jogo e do turismo, haviam adotado fortes medidas de combate
a esses problemas, mas nem sempre haviam sido bem sucedidos: a corrupção,
a demagogia, o nepotismo, o "caciquismo", os "lobbies" e outros vícios
ancestrais do processo político brasileiro acabavam promovendo desvios
de recursos e fazendo naufragar vários projetos, quase sempre bem intencionados,
mas ingênuos e utópicos, de muitos dirigentes locais. Por outro lado,
se o jogo trouxera empregos e impostos, também favorecera o afrouxamento
moral. A prostituição de luxo, estimulada no âmbito dos cassinos, e praticada
por jovens vindas de todas as regiões do país, que já existia em Corumbá
havia muito, por causa do turismo pesqueiro, atingia agora níveis antes
inimagináveis. É bem verdade que o consumo de tóxicos e a proliferação
da AIDS haviam sido sensivelmente reduzidos, pelo terror que, desde o
final do século XX, se espalhara em todo o mundo a respeito das conseqüências
desses dois fantasmas. Em contrapartida, o alcoolismo e a jogatina assumiram
proporções gigantescas, não raro levando as vítimas desses vícios ao roubo,
agressões, homicídios e suicídios.
Esse quadro conduzira ao aparecimento de um número incontável de "igrejas"
e organizações ditas "assistenciais" de toda ordem, que, como ponto comum,
autoproclamavam-se "detentoras da verdade", prenunciando para breve o
final dos tempos, quando, segundo antigas profecias de Dom Bosco - sempre
pregadas, desde que os Salesianos ali haviam se instalado, no século XVIII
- o Pantanal seria o único lugar do mundo a ser preservado, como um novo
Jardim do Éden. E os adeptos dessas prédicas aumentavam cada vez mais,
organizando atos de protesto contra a luxúria que, em seu entender, imperava
na região, como uma filha bastarda do elevado desenvolvimento econômico
recente.
Não era muito fácil, portanto, a tarefa de Lúcia, a Secretária de Governo.
Paralelamente às manifestações de ufanismo desenvolvimentista que fatalmente
ocorreriam por ocasião dos 250 anos da cidade, conduzidas pelo estamento
político, outras, de protestos fundamentados em crenças aparentemente
religiosas, certamente teriam lugar, em oposição às primeiras. Caberia
a ela tentar harmonizar esses interesses conflitantes, de maneira a não
pôr em jogo o destino político de seus empregadores.
- "Rainha! Acorda!"
Era Lúcia, percebendo que sua interlocutora não captara uma só palavra
da minuciosa descrição que ela fizera do programa de festejos. Por isso,
para irritá-la, chamara-a de "Rainha". E se ainda
não conhecia exatamente os porquês desse apelido, continuava a tentar
descobri-los....
- "Quer saber os nomes da última confirmação de presenças que recebi ainda
agora ?"
A Rainha deu de ombros, sem se importar. "Quem poderia
ser?"
- "São sete velhinhos. Cinco já passaram dos oitenta, dois andam pelos
setenta. Vão ficar no Hotel Nacional...."
A Rainha, por um instante, interrompeu suas divagações.
Uma sensação de frio começou a percorrer sua espinha. Ela
se inclinou mais para o videofone. Lúcia percebeu, e provocou a amiga:
- "Interessou-se ?" E começou a declinar os nomes dos convivas, vagarosamente.....
Era demais. A Rainha, bem a seu jeito estabanado, desligou
abruptamente o aparelho. Os cabelos longos - a "crina do centauro", marca
dos Sagitarianos - caíram sobre seu rosto, fazendo-a assumir por um átimo
aquela feição sensual que tanto encantara alguém, havia muito tempo...Ofegava,
como desde criança, quando ficava nervosa. Correu para a suite. Trancou-se.
Não queria que Edson visse suas lágrimas. Deitou-se, semicerrou os olhos
e deixou que antigas lembranças por fim aflorassem.....
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