Atualização 062 - EM CIMA DO TELHADO
BIOGRAFIA
DENTADURA AZARADA
Claudia Sanzone
Antigamente havia umas simpatias envolvendo dentes. Para quem era um pouco mais abastado, fazia-se um pingente de ouro com aquele primeiro dente-de-leite que a gente perde ainda criança. Cobria-se a parte da raiz do tal incisivo com uma capinha de ouro, acrescentava-se uma argolinha e pronto. Surgia um amuleto delicado que, pendurado em cordões ou gargantilhas, ornamentava pescoços de meninas, moçoilas e "mulheres feitas", como se dizia na época.

Minha avó já preferia uma outra superstição. Dizia ela que a criança deveria pegar o primeiro dente, ir até o jardim, virar-se de costas, fazer um pedido e tacar o danado lá pra cima do telhado. Nem precisava ser rico pra isso. Dava sorte. E o pedido? Tinha chances de ser atendido? Se o primeiro dente decíduo abandona a gengiva em torno do quinto ou sexto ano de vida, coincide certinho com a época de acreditar em Papai Noel, coelhinho da Páscoa... Então, o momento era propício para o lançamento e a espera, esperança.

Meu irmão, doido pra ganhar uma bicicleta, fez tudo certinho com a simpatia do dente. Uma vez que a bicicleta não aparecia, repetiu logo o ritual com os demais dentes. Ficou banguela dos de leite, os definitivos começavam a apontar e nada de ganhar o veículo de duas rodas. Deu pena. Resolvi ajudá-lo e fiz pra ele o mesmo pedido. Quem sabe um reforço assim tão concentrado de duas arcadas não traria a força necessária para que o desejo se realizasse?

Neca.

Aventamos outras modalidades para a mesma prática. Pensamos numa corrente de energia ainda mais concentrada... E aí veio a idéia brilhante: a dentadura da vovó! Armamos um esquema para pegar a dita-cuja do copo d'agua, de madrugada. Munidos de vara e anzol, pescamos a danada. Depois titubeamos um pouco porque não sabíamos se dentes falsos teriam o mesmo poder de realização nesses casos e, além disso, assim fora d'agua e livre da refração, os dentes pareciam menores... Ah, que se dane! Tarde demais para voltar atrás. Jogamos a coisa pro telhado.

Nessa época, passava dias lá em casa um primo chatinho que vinha nos visitar de vez em quando. Alcagüete, o pentelho pôs tudo a perder. Entregou a gente. Ganhamos, em vez da bicicleta, uma geral do pai, chinelada da mãe e um deixa disso da vó, coitada, a única prejudicada de fato nessa história toda. É que a dentadura até que se saiu bem na decolagem, mas infelizmente se partiu em alguns pedaços na aterrissagem.

Mas passou, como tudo da infância passa. Aliás, nem tudo... Confesso que até hoje dá raiva lembrar que, enquanto permanecíamos de castigo, o primo dedo-duro se esbaldava todo com a bicicleta nova, bem ali no jardim de nossa casa.

Ô porcaria de dentadura azarenta!

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