Atualização 062 - EM CIMA DO TELHADO
BIOGRAFIA
ESPINHA DE PEIXE
Beto Muniz
Tem hora que eu viajo nas lembranças, me distraio do mundo e acabo por fazer papel de bobo diante dos meus amigos. A viagem dessa semana começou no Fran´s Café, onde eu conversava com uma amiga que vive fugindo de escrever, mas se interessa pelo que escrevo.

- Onde diabos vocês buscam o tema da quinzena?

- Conversa surgida em mesa de bar, numa dessas quartas-feiras.

- E você já escreveu seu texto sobre esse telhado?

- Geralmente não escrevo sobre o tema sugerido, primeiro escrevo o texto e depois faço uma adaptação ao tema, mas nessa quinzena o meu método não vai funcionar. "Em cima do telhado" é muito específico, quase limitado, e isso dificulta.

- "Pobrema" seu, mete-se a ser escritor agora quero ver você se matando pra tirar leite dessa pedra. Já tem alguma idéia?

- Pensei numa coisa, mas ainda não desenvolvi...

- Pensou o quê?

- Não vou te dizer! Primeiro, porque eu preciso amadurecer a idéia e, depois, quero mais é que você gaste com luz, telefone, provedor e entre no site dos Anjos para ler meu texto!

- Acho que você não tem idéia alguma sobre o que escrever e, pela primeira vez desde que os Anjos de Prata foram criados, tu vai ficar sem participar.

Fiz cara de escritor trabalhando mentalmente uma idéia e não respondi. Mas a verdade é que ela estava com razão. Minha mente era um branco total. A amiga ficou me encarando por detrás da fumaça do café com cara de deboche, como que esperando uma resposta ao seu desafio. Os neurônios não ofereciam nada que pudesse distrair a curiosa e eu comecei a admitir a hipótese de ficar fora da atualização. Quando estava para assumir minha momentânea incapacidade criativa, o seu risinho malicioso mexeu com meus brios e me calei. Nesse ínfimo instante de suspensão entre ruína e dignidade é que foram surgindo as espinhas de peixe. Na medida em que elas tomavam conta dos telhados e de mim, fui me distanciando da realidade até ficar ausente do mundo.

Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isso maquinista?

A amiga tinha por ouvinte uma xícara fumegante quando eu embarquei minhas lembranças na ladainha crescente. O transporte ao passado foi tão pleno que na minha mente... até ouvi papai cantarolando o "Trem de ferro":

Oôô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De nadar...

- Pai, tá errado, é vontade de cantar.

- Então canta!

E eu cantava.

Ooôô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oooôô...

Ano de 1971. Minha família se muda para Minas Gerais e eu tenho pouco mais que seis anos de idade. A imagem guardada na mente é a saída de São Paulo a bordo do velho trem da FEPASA. Sempre fui avoado. Percebo as coisas a minha volta quando elas já estão explodindo e, por conta disso, estava empolgado com a viagem e só pressenti algo estranho quando mamãe pediu para que eu e meus irmãos nos despedíssemos dos amiguinhos, dos primos e dos vizinhos porque a gente iria embora.

Um mundaréu de gente na casa, no quintal, no portão e nas janelas. Iniciei as despedidas como se fosse passear e voltar logo, mas à medida que os parentes foram me abraçando, algumas tias chorando e meu avô fazendo recomendações, eu percebi que meus irmãos estavam estranhamente calados. Antes de chegar na estação de trem minha animação tomou rumo ignorado e de repente eu não queria mais passear. Na despedida final eu me agarrei nas pernas de minha avó pedindo para ela não deixar que me levassem. Mamãe tentou me acalmar, mas as lágrimas em seus olhos me apavoravam. Papai nada falou, apenas me pegou no colo e abraçou contra o peito. Saiu pisando firme rumo ao interior da estação da Luz. Ainda me tinha contra o peito quando entramos no vagão de viagem. Foi ouvindo seu coração batendo forte que adormeci.

Quando acordei o trem estava em movimento, papai estava exageradamente animado, querendo contagiar os filhos. Estavamos assustados com a possibilidade de nunca mais voltar para casa. No corredor do trem surgiu um carrinho de sanduíches, bolachas e bebidas quentes. Minha mãe comprou biscoitos e café com leite para todos nós. Assim que o vendedor da ferrovia nos serviu e se afastou, papai começou a acompanhar o ritmo do trem com o poema de Manuel Bandeira.

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Menos de um ano após eu já estava esquecido de São Paulo, maravilhado com o mundo que me fora apresentado em Minas Gerais. Não tinha luz, televisão, geladeira, ou mesmo fogão a gás, mas isso lá são coisas que façam diferença na vida de um menino? Diferença mesmo faziam o córrego, o pomar, o cavalo, os passarinhos, terra, mato...

Todos os anos meu pai tinha que viajar para a 'Capital'. Só que para nós a capital era São Paulo, e numa dessas viagens ele me levou - promessa feita nas despedidas da viagem anterior. Logo depois do meio-dia saímos da vila. Diariamente um único ônibus cruzava o Rio Grande em direção a Fernandópolis e às nove da noite embarcamos no FEPASA rumo a capital do estado de São Paulo. Só a viagem de trem durava doze horas. O vagão estava quase vazio e papai reservou duas poltronas para nós. Na mala havia um cobertor para cada um. Novamente o ritmo da locomotiva marcou a cantilena do Bandeira. Meu pai, que tinha o poema guardado na mente, me emprestou o livro para que eu acompanhasse a letra.

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...

Com pouco mais de duas horas de viagem eu também já tinha decorado o poema e dormi, ouvindo novamente o coração do meu pai.

Amanhecia quando acordei. Estava deitado na poltrona com um cobertor me servindo de travesseiro e o outro de cobertor mesmo. Papai, que estava lendo, parou e me ofereceu leite com café e pão com manteiga. Comi olhando pela janela os postes passando, os pastos passando, o boi passando, passando a boiada, passando galhos debruçados e as curvas sinuosas dum riacho. Eu ainda não sabia, mas estávamos chegando na cidade de Rio Claro. Depois que passamos por Limeira o dia ficou totalmente claro e assim que o bilheteiro anunciou a chegada em Campinas, vi centenas e centenas de casas com espinhas de peixes em cima do telhado. Eram antenas de televisão. Inúmeras. Todas elas opacas sob o sol já intenso. As antenas anunciavam que a cidade tinha luz, tinha televisão, tinha desenho animado, tinha geladeira, tinha sorvete! As lembranças de tudo que eu deixara em São Paulo retornaram e eu só queria chegar logo na casa da minha avó. saudade de assistir Vila Sésamo.

Desde esse dia, sempre que eu viajava para São Paulo, as cidades de Campinas e Jundiaí, com seus telhados repletos de antenas em forma de espinha de peixe, marcavam a chegada ou a saída do que eu considerava a Capital. Isso até quando desativaram a linha São Paulo-Santa Fé do Sul e inventaram a antena interna. Pensando bem, quando passamos a viajar pelo asfalto da rodovia Washington Luis eu deixei de prestar atenção nos telhados e antenas. Papai se ocupou do volante e nunca mais cantarolou Manuel Bandeira. Tudo bem que ele tenha deixado de alegrar as viagens com a cantilena, pois nenhum carro tem o ritmo e a cadência do trem de ferro, mas senti falta mesmo foi de dormir ouvindo seu coração.

- Acorda pô!

- Virge Maria que foi isso?

- Estou falando sozinha aqui...

- Desculpe, viajei no tema da quinzena... O que você estava falando mesmo?

- Que a minha televisão pifou.

- Se você imaginar que cada pé de cana é um oficial a televisão não vai te fazer falta.

- Cheirou chulé e ficou mais bobo?

Tem hora que meus amigos, alguns deles, pensam que sou bobo, mas nessas horas estou apenas distraído com as lembranças de alguma coisa. De uma viagem, um trem de ferro, um poeta, um poema... Ou só com saudade da batida compassada do coração paterno.

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