CORVO
CISCO PRETO
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Antonio
Rodrigues
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Oz
recebeu a notícia do falecimento de um seu estimado amigo, o Francisco,
mais conhecido pela alcunha de Corvo. Disseram que foi parada cardíaca.
O Corvo - ou o Cisco Preto, como Oz carinhosamente o chamava - era uma figura sem igual. Um radical, como gostava de se definir. Para ele não existia meio termo. Ou sou oito ou sou oitenta, dizia. Quando alguém lhe oferecia um copo de cerveja, dizia: eu sou é homem, rapaz! E ia lá entornar sua pinga pura, lambendo a banda de um limão a tira-gosto. Quando ficava resfriado, a primeira - e única - medida de que se valia era mastigar pacientemente e engolir a não menos pura raiz de gengibre. Se alguém se atrevesse a lhe indicar algum elixir de farmácia ele já se armava com seu velho jargão, cada vez mais enfático: tô cansado de dizer, porra! Eu sou é homem! A fama de radical provinha sobretudo de suas idéias acerca dos políticos. Dizia que: "São todos corruptos e mentirosos. Todos. Não é possível admitir que uma minoria se salve. Crer na minoria é o erro fatal em que a população incorre. Por quê? Ora, se depositamos nossa confiança em um punhado de boas almas nada impede que as más se considerem pertencentes a esse reduzido grupo. Acabam se misturando todos e fazendo uso do mesmo discurso, o de que é preciso saber separar o joio do trigo. Esse blá blá blá fica por isso mesmo; mandato vai, mandato vem e as coisas só pioram." "A população, boba, acredita que com o voto realmente escolhe os melhores governantes. Que bobagem! Finda-se o processo eleitoral, distanciam-se povo e governo. Fica só a ilusão de que aqueles que são trigo lancem-se à missão de destruir o joio, fazendo valer a autoridade de que foram incumbidos pelos bobos da corte. Mas esta obrigação não é observada! O trigo é conivente com o joio e, assim, ambos se tornam farinha do mesmo saco. Por outro prisma, ao aceitar a idéia da minoria que se salva, a própria população se torna conivente com a maioria podre. Deixa tudo como está - porque poderia ser pior, sustenta-se - tornando-se, pois, parte do mesmo saco de farinha estragada. No fim das contas, resta o que os meus e os seus olhos já cansaram de constatar... Resta essa merda toda que tá aí." "Acho que ninguém gosta de ser enrabado pelo governo, pelo corrupto governo, mas isso já se tornou costume, aceitação geral, e ninguém mais reclama. Alimentamos a ilusão da liberdade, a ilusão de que efetivamente somos livres, de corpo e de consciência, desde os primeiros dias de aula, quando nos é servida a primeira cuia de lavagem estatal. O fato é que em quinhentos anos de história nunca fomos tão escravos, nunca fomos tão submissos, nunca fomos tão pequenos como agora. Reles mamulengos." E lá se foram dez anos de amizade que fortemente os unia. Dez anos durante os quais o Corvo, respeitado mestre de capoeira, transmitiu seus conhecimentos ao amigo, tido como filho, Oz. Uma das mais importantes lições: subir ao telhado de vez em quando para melhor refletir. E lá estava Oz, no telhado. Pensava na morte. Pensava nas outras oportunidades em que essa inevitável senhora estacionou ao seu lado e ao lado de seu mestre a inconfundível carruagem cor de ébano, com seus robustos e velozes cavalos. E teceu a apologia da libertação. E sussurrou algo acerca da existência perfeita. Encetou lisonjas e mercês. Gesticulou. Orou. Insistiu. Debalde. Estiveram ambos altivos e absolutos em suas trajetórias. Resignada, a morte se ia. Mas não se afastava muito. |
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