FIÉIS ATÉ NO FIM DO MUNDO
Marcel Agarie

São Paulo, 31 de dezembro de 1999.

São 23:44hs e os fogos já estouram pelo céu de mais uma véspera de ano novo. Uma noite linda, com a lua e as estrelas iluminando toda a rua, digna de inspiração para muitos poetas. Não para dois senhores de aproximadamente 30 anos, que conversavam com a voz embargada e tristonha, abraçados, esperando a confirmação de uma notícia que ouviram ainda crianças: O final do mundo na entrada do ano 2000.

Sentados no degrau da porta de um bar, aguardavam pelo fim conversando:

- Sabe Antônio, estou muito triste porque o mundo vai acabar daqui 15 minutos. Você tem idéia do que isso significa?

- Ainda não me caiu a ficha, Pedro. Mas pra falar a verdade, não estou muito preocupado não. O importante é que vamos para o céu, afinal, demos 60% do nosso salário, durante 3 anos, para o Pastor da igreja anistiar os nossos pecados. Você lembra disso?

- Claro que me lembro. Foi de 1995 até 1998. Inclusive, depois deste período não cometi mais nenhum pecado. Nem deixar cocô na privada sem dar descarga eu deixei. Porém, fico triste com os diversos colegas e amigos que não colaboraram com o pastor e, por isso, não os encontraremos no céu.

- É verdade! Mas eles nunca se preocuparam com isso também. Tanto que todos foram viajar para o litoral e não quiseram saber de ficar conosco. Só sobraram mesmo eu e você na cidade. 

- O que mais me entristece nisso tudo Antônio, é saber que a Dna. Vicentinha, aquela senhora da casa 86, não irá para o céu. Ela é uma pessoa tão boa, ajuda as crianças do bairro, dá aula de música de graça na creche. Será que ela não merece ir também?

- Claro que não Pedro! Ela nunca fez nenhum sacrifício pelo Pastor. Você lembra que ele disse para nós, que somente quem colaborasse com dízimos e sacrifícios à igreja, é que estaria livre de todos pecados? Pois bem. A Dna. Vicentinha nunca tirou um tostão do bolso para ajudar, por isso, seria totalmente injusto ela ir para o céu sem colaborar. Nada contra ela, mas o que é certo é certo.

- É Antônio, você tem razão. Não seria nada justo. 

Neste momento, um clima mais tenso invade a conversa e aumenta ainda mais a ansiedade.

- Pedro. Faltam ainda quantos minutos?

- Seis.

- Porra! Ainda faltam seis minutos! Parece até a eternidade!

- Antônio! Você pecou! Você disse um palavrão! Você falou, humm... Como posso dizer? Você falou "esperma", mas do jeito feio. O que vamos fazer? Você não vai mais para o céu!

- Puxa Pedro! O que eu faço agora? Você tem o telefone do Pastor? Preciso falar com ele urgente!

- Tenho sim, mas vamos agir rápido que agora só temos 4 minutos. Vamos até a esquina, que lá existe um orelhão*. Ligamos de lá mesmo.

- Mas você tem cartão telefônico, Pedro?

- Não tenho, mas a gente liga a cobrar. O Pastor vai entender que o motivo é de urgência.

Os dois desesperados correram até o orelhão e os fogos, agora mais intensos com a proximidade da virada, quase não os deixaram ouvir nada no fone.

- Antônio! Antônio! O Pastor já atendeu?

- Ainda não. Uma mulher está falando agora, espera ai! Quanto tempo ainda temos?

- Dois minutos. O que a mulher está falando?

- Não sei. Parece que ela pediu para eu dizer o meu nome e a cidade de onde estou falando.

- Ora! Então fala para ela Antônio!

- Peraí Pedro! Acho que o Pastor atendeu!

Faltando 1 minuto para a virada, o Pastor atende o celular e conversa com o seu fiel Antônio, que está desesperado, ao som de muitos fogos de artifício:

- Alô? Quem está falando?

- Pastor! Tudo bem? Onde o senhor está?

- Estou aqui em Porto Seguro, comemorando a virada do ano. Quem está falando ai?

- Quem está falando aqui é o um de seus fiéis, que freqüenta a sua igreja. Sou o Antônio! Estou com um enorme problema e o senhor só tem alguns segundos para me ajudar.

Reconhecendo a voz do fiel, o pastor dá um ar sério a sua voz e responde:

- Diga fiel! Pode falar!

- Eu pequei a poucos minutos do mundo acabar! Preciso que o senhor me ajude! Não vou para o céu!

- Fique tranqüilo Antônio! Tivemos hoje uma reunião de emergência, onde ficamos 15 horas ajoelhados, e recebemos uma mensagem através das nuvens, dizendo que o mundo não irá se acabar hoje!

- Puxa Pastor, que ótimo! Mas o senhor tem certeza!

- A palavra não mente Antônio. Agora vá! Não me encha mais o sa... Ops! Quero dizer, encha-se de orações e tenha um feliz ano novo. Assim que eu voltar de Porto Seguro, muito provavelmente depois do carnaval, rediscutiremos sobre o assunto e acabaremos de vez com todos os seus pecados. Aleluia!

- Aleluia Pastor! O Senhor é muito bom! O Senhor tem sempre razão! Já são 00:03 e o mundo não acabou mesmo! Muito Obrigado!

Felizes, Antônio e Pedro voltaram a porta do bar e comemoraram a nova chance que a Dna. Vicentinha teria com a prorrogação do fim do mundo. Festejaram também a possibilidade de ver novamente os amigos que estavam no litoral desfrutando da festa da virada e, principalmente, prometeram que depois de tudo isso, seriam muito mais fiéis ao Pastor.

Aleluia!

*Cabine Telefônica em formato de uma orelha grande. Um orelhão.

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