FIDELIDADE É PLÁGIO
Juliano Polimeno

Diziam-se modernos aqueles dois. Tanto um quanto outro tinham inteira liberdade para sair com outras pessoas, trepar a noite toda, chegar às 6 da manhã em casa, dar um beijo de bom dia no oposto, contar os detalhes da relação fluida com a cobaia do sexo sem amor e ir pra cama depois da singela frase: Estou acabado(a)! Viveram assim, nessa putaria consentida, durante quatro anos. E foram felizes. Os amigos, dos quais muitos constavam na lista de comidas e comidos, invejavam tamanha felicidade e a ausência de ciúmes entre o casal. Para eles, tal sentimento parecia fundamental para a manutenção de uma relação. Achavam que quando não há ciúmes também não há amor, o que, convenhamos, numa sociedade fundada no direito de posse, parece bem normal. Ou bastante anormal. Os físicos newtonianos vinham com a máxima explicativa: "depende do referencial". Eis. A única regra desse relacionamento, escrita na lei mútua do casal, dizia respeito ao uso das palavras. Durante o processo de conquista estavam proibidas a utilização de determinadas palavras que pudessem, mesmo sem querer, compor um verso. As metáforas eram suas cruzes. Não podiam transparecer qualquer vestígio de inspiração. Cartas, além de fornecer uma prova material, era o maior pecado que um poderia cometer contra o outro. Nem os bilhetinhos, tão comuns na sedução, eram permitidos. O leitor carnívoro deve perceber a importância dessa regra. O amor sublimado e transformado em poesia, para esse casal, era a representação exata, materializada e metricamente formal da ação infiel. A fidelidade deriva de um pacto, qualquer que seja ele, firmado por ambas as pessoas que compõem esse bem determinado casal. Por outro lado, o leitor romântico que prefere um bom poema a uma boa trepada também merece algum tipo de esclarecimento. Para esses, a poesia deve ser compartilhada, mesmo sendo mentirosa (como aliás muitas são), e proibir a realização de uma idéia sentimental e volátil na linha do papel é qualquer coisa pra lá de anti-natural. Os viventes dessa história não se encaixam em nenhuma dessas duas categorias de leitores com extremo conforto. A regra contra a poesia foi a única proibição aceita e no cartório da alma constam a assinatura dos dois. A infração, portanto, acarreta, antes de mais nada e de qualquer conteúdo, a infração de um consentimento, de um contrato social entre duas pessoas. Trepar pode, metaforizar não. Simples assim. Eis que um belo dia o homem encontra nos pertences da mulher um bilhete com uma única frase. A letra, logo identificada por ele, era a de sua companheira. O ódio de honra rompida tomou conta de sua alma. Seus olhos escureceram, o palpite do coração confirmava todo aquele sentimento de traição. A mulher tomava banho e cantarolava uma melodia aguda, cada nota entoada ardia no corpo daquele homem transtornado. Sem pensar em nada, ele foi até a cozinha apanhou a mais afiada das facas e, ainda não satisfeito, amolou-a na pedra de diamante industrial. Instruindo a si mesmo, bateu na porta do banheiro com delicadeza. A mulher pediu alguns segundos para fechar a torneira. Quando abriu a porta, o homem, num único movimento, certeiro e impiedoso, enterrou a faca em seu peito. Eu, como narrador onisciente dessa história, lhes digo que o tal bilhete causador da desgraça voava com o leve vento que entrava pela janela da sala. Quando até os deuses perceberam a morte, o bilhete foi caindo lentamente sobre o sofá. Esses instantes me causaram profundo sofrimento tamanha a curiosidade que pairava em minha mente observadora. Finalmente pude perceber que o papel havia sentado com as letras pra cima e então pude ler, logo após colocar meus óculos de grau. Lá estava a fatídica frase endereçada a um amante qualquer: "Batatinha quando nasce se esparrama pelo chão." Enfim, a fidelidade é plágio.

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