RESPEITE
AO MENOS MEUS CABELOS BRANCOS
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
Isadora e Calixto viveriam felizes para sempre não fossem os reveses que a vida tardiamente lhes reservou. Quem os visse entre aqueles inesquecíveis anos 50 e 70 diria que foram feitos um para o outro; pois par mais perfeito não havia: falavam a mesma língua, dançavam a mesma música, compartilhavam os mesmos gostos, teriam filhos maravilhosos que no futuro lhes dariam uma penca de netos. E, como sempre acontece nesses casos de uniões exemplares, eram invejados, muitíssimo invejados.
Lá pelos idos de 73 Calixto, funcionário da Rede Ferroviária, por força do seu trabalho se viu obrigado a ir "onde a linha fosse". E a construção de um ramal ferroviário cortando o cerrado os levou a uma vida de constantes mudanças. Onde quer que a Companhia armasse acampamento, lá estavam eles com seus três filhos, suas tralhas, seus bichos de estimação, montando um lar provisório. Pareciam ciganos. Nem dava tempo de se apegar ao lugar ou de sentir saudade do anterior e lá estavam eles partindo novamente.
Acampamento nunca foi o lugar mais indicado para família, mas Calixto, apegado que era, jamais suportaria ficar longe da sua. Mesmo que tivessem que submeter-se ao risco de habitar casas feitas às pressas em lugares ermos, sem nenhuma estrutura básica. Mesmo que expusesse os seus à convivência com homens rudes, saudosos e distantes de suas mulheres, cuja diversão e passatempo resumia-se em se encharcar de cachaça, jogar cartas e fornicar com as putas da cidade mais próxima que apareciam aos enxames nos dias de pagamento.
Foi quando Isadora teve a péssima idéia de montar a venda. Sim, parecia uma ótima idéia. A cabeça das mulheres estava mudando. Queriam ficar independentes, conquistar seu espaço.
Um dia Isadora se descobriu empreendedora. Queria o seu próprio dinheiro e sabia como ganhá-lo. O mais difícil, porém, era convencer Calixto da viabilidade da idéia. Mas ela tinha lá os seus trunfos e sabia direitinho como dobrá-lo. E dobrou.
Daí por diante, em cada acampamento que se erguia, a Venda da Isadora, era o point dos "cassacos" ( como eram chamados os trabalhadores da ferrovia. O apelido, acho que por causa do cheiro forte que exalavam, vinha de uma espécie de gambá da fauna do cerrado). Era ali, que choravam suas mágoas, esqueciam seus infortúnios, descarregavam suas frustrações e deixavam as sujas e amarfanhadas notas que conseguiam com o suor do rosto e os calos das mãos. A música que tocava na vitrola e que falava dos amores impossíveis, das desilusões amorosas, das traições, deu nome ao estabelecimento: Brega. A venda virou o "Brega da Isadora".
O dinheiro, raiz de todos os males, começou a entrar fácil. E fácil as coisas, tanto as materiais quanto as afetivas, começaram a mudar: uma geladeira nova, um descuido da saúde do filho; um vestido de seda japonesa, um virar para o lado e dormir sem tempo para o marido.
Passaram-se alguns anos e Isadora mantinha-se como um baluarte da moral e dos bons costumes em meio àquela sodoma. Quase inatingível. Até que começaram os boatos, os disse-que-disse, as más línguas. Acusavam-na de prática do cáften, de aliciar menores para a vida fácil e, o pior de tudo, de infidelidade. Ninguém provava nada, mas onde há fumaça...
E havia fogo. Lava pura da paixão recolhida e desejos contidos de um vulcão em forma de mulher que já não se contentava em dedicar seu amor a apenas um homem. Se podia ter todos que quisesse, ali, num estalar de dedos, pensava, por que prender-se a aos limites, às regras e convenções estabelecidas por uma sociedade hipócrita?
Um problema havia: Calixto. Como iria ficar o marido traído, o último a saber, nessa história toda? Iria conformar-se, aceitaria a triste sina, ela sabia. Era um homem de paz, não levantaria a mão contra ela, não partiria para os "finalmentes" e saberia como administrar a sua dor além de cuidar dos filhos.
Tudo isso se confirmou. Enquanto Isadora vivia la vida loca, Calixto sangrava por dentro, coração esmagado pelos vagões da humilhação. Bebia. E ébrio, na roda de choro que se reunia para tocar sucessos de antigamente pedia para cantar sempre a mesma canção:
"Não fale dessa mulher perto de mim..."
Música de corno, riam. Ele não se importava e punha a alma na voz.
"Respeite ao menos meus cabelos brancos"
Ela não respeitava. Nem os cabelos pretos. Não dava-se ao respeito. Era a toda-poderosa Rainha do Brega e ele era apenas um corno manso e conformado cujo nome acabaria por virar sinônimo de traído, de chifrudo: "Fulano tem vocação para Calixto"; "Não vá me Calixtear, senão...".
Um dia a construção da ferrovia terminou, mas o sofrimento de Calixto não. Foram embora para Brasília e ele se aposentou, mas Isaura, matrona insaciável, sugando corpos com o mesmo apetite de sempre, manteve-se na ativa.
Até que uma tarde o corpo alquebrado de Calixto não mais conseguiu conter o monstro que se elaborava em seu interior. O manso cordeiro sentiu uma sede que bebida alguma no mundo que fosse capaz de saciar. E começou a afiar sua faca.
Foram 13 as facadas, deu na rádio. No dia do aniversário de Brasília. Fogos iluminavam a Esplanada dos Ministérios. quando Calixto, soltou seus demônios. Deu no que deu. Cena nelsonrodrigueana numa rua empoeirada de Planaltina: um corpo coberto por páginas do Diário Oficial, um homem já avançado nos anos com uma faca na mão.
A vingança tarda mais não falha. Arriscou alguém do meio da multidão de curiosos.
Não seria a justiça?
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