EU NÃO ERA EU
Cléo Siqueira

Acredita, amor, acredita! Fui fiel a ti, eu fui! Mesmo na tua longa ausência, mesmo sem saber-te onde e como, mesmo sem me amares, conservei-me tua! Acredita, amor, acredita! Fui fiel a ti, eu fui! Posso provar-te! Escuta-me atento, não duvides, basta que pares e reflitas: o que é o corpo que entreguei a outros? O que é senão matéria? Matéria! Matéria frágil que apodrece e não guardaria para ti nada que fenecesse! Entendeste? Como não?! Tocaram-me e não eras tu? Tocaram-me, é certo, e o que isto importa? Tocaram-me e mais fizeram: esfregaram-se em mim! Com curiosidade, com tesão, com safadeza, com maldade até! Mãos bolinaram-me sedentas, sacanas, habilidosas, brutas. Bocas, ásperas, gulosas, ensopadas, abriram-se sobre mim: rosto, membros, seios, sexo. Puxaram-me os cabelos, os braços, os pés. Abriram-me as pernas e apossaram-se da minha fenda, quantas vezes! Quantas vezes meus ouvidos umedeceram-se em resfolegares impessoais e egoístas! Quantas vezes! Quantas vezes enxarquei e escorri gozos que não eram os teus! Quantas vezes! E em nenhuma, amor, em nenhuma a sensação de inteireza, a certeza do completo, a paz delicada de quem amou. Em nenhuma, amor! Porque não eras tu, meu amante e meu amado, que te servias com o prazer que eu sentia, que te satisfazias com o meu deleite prolongado em tuas carícias, que te querias eternamente viril para tornar-me fêmea perfeita, saciada, feliz. Tua fêmea, para sempre fiel.

Acredita agora, amor, acredita? Dei apenas um corpo, umas tantas vezes, que não é o corpo que te dou neste tempo. O corpo que dei extinguiu-se em mãos cegas, em olhos vazios, em sexos vaidosos. O corpo que te dou refaz-se e renasce em tuas mãos férteis, em teus olhos sensíveis, em teu sexo amoroso. Acredita, amor, acredita! O que é o corpo que dei a outros que nada sabiam dele? O corpo que dei foi mera escarradeira do tédio, do orgulho, da solidão, da auto-afirmação, da novidade, da aventura. Não foi visto, não foi querido, nem sei se necessário. Escoou. Esgotou-se. Sequer morreu, que ia sem alma: esta somente tu receberias. Então, acredita, amor, acredita na fidelidade desta alma que abandonou a casa deixando-a em ruínas para não falhar com seu imenso afeto. Acredita, amor, acredita que fui fiel a ti porque, sem alma, eu não era eu.

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