DOCE HERANÇA
Claudia Sanzone Ramos

Era um dia daqueles. Já no café da manhã, a torrada caiu no chão com o lado lambuzado de requeijão ligth para baixo. Chovia torrencialmente. Antes de sair para o trabalho, pneu furado. Engarrafamento. Chuva. Todos os semáforos acesos na luz vermelha. Chuva. Atraso e bronca do chefe, claro. Tarefas acumuladas e cólicas menstruais. Durante o expediente, Dora precisou ir à rua para buscar uns documentos. Chuva. O salto alto do sapato quebrou. Por último, a saída do escritório bem depois da hora e o cansaço. Enfim, um dia de cão. Dora teve uma surpresa quando chegava em casa. Um canino de porte médio, peludo, de cor marfim, pinta preta na língua e cauda abanante aguardava-a na varanda de entrada da casa. Assim que ela saiu do carro, o quadrúpede veio saudá-la com aquela empolgação característica dos velhos conhecidos. Caía uma chuva fina. De onde teria surgido aquela criatura? Se a primeira impressão é a que fica, as patas cheias de lama do cachorro deixaram manchas eternas impregnadas na blusa branca de linho que ela vestia. Dora não tinha muita afinidade com animais. Mas... seria crueldade mandar o cão embora debaixo de uma chuva gelada daquelas. Melhor que ficasse. E foi ficando. Recebeu o nome de Cigano e ganhava bom trato de sua acolhedora, agora proprietária. Mesmo que Dora não acreditasse em ocultismo ou superstições, algo lhe dizia que sua vida ficou meio tumultuada depois que Cigano apareceu. No trabalho, a promoção não saía. Os relacionamentos afetivos desmoronavam-se. Até as regras menstruais, que eram um reloginho, atrasavam. Todavia, procurou não dar tanta importância ao fato. Cigano era um "cara" legal. Os amigos de Dora, também o eram do cão. Cigano chegou a ser cupido e ao mesmo tempo pomo da discórdia. Como? Bem, Ivo, amor secreto e antigo de Dora, lamentavelmente tinha um apetite canino pelas carnes de Isabele, a vizinha boazuda deles. Um dia saiu o primeiro beijo. Namoraram e noivaram. Tempos depois, enquanto Ivo aguardava Isabele no carro para saírem juntos, o peludo aproximou-se afoitamente com uma peça de vestuário na boca. Invadiu o automóvel do amigo. Fez uma festa ligeira e saiu correndo sem o objeto. Isabele entrou no carro, jogou a bolsa para o banco de traz. Voltou-se para frente e deu imediatamente uma bofetada violenta no rosto do inocente do Ivo. Fim de caso. Alguns instantes após o ocorrido ouvia-se Dora aos berros "Cigano, cadê meu soutien, seu moleque?" Esse leal companheiro canino não chegava a ser medroso. Porém, também não era exatamente um exemplo de valentia. Podia-se dizer que Cigano era um cão determinado. Balas? Nunca foram problema para ele! Enfrentava qualquer desafio pelas de caramelo, embora preferisse drops kids hortelã. O banho era uma atividade coletiva. Envolvia a participação de Dora, dele mesmo e de tudo mais que estivesse num raio de dois metros. No verão, bastava vestir um maiô comprado numa liquidação de brechó e encarar a tarefa. No inverno a coisa complicava um pouco... Por mais que parecesse natural, aquele macacão de mergulho, todo de borracha, preto e com detalhes em coral, ficava meio extravagante nela. Havia também um instinto cavador naquela "peste". O quintal uniformemente gramado de outrora havia se transformado numa réplica da superfície lunar, tamanha a quantidade e variedade de crateras existentes ali. Cigano era um "expert" em sepultamentos e exumações. Fez do subsolo da casa um verdadeiro depósito de quinquilharias. Segundo um conhecido hindu de Dora, baseado na concepção panteísta, acreditava que o cão fora a reencarnação de um importante arqueólogo. Por isso cavava tanto. Céptica e atéia, Dora achava mesmo é que aquele "espírito de porco" só poderia ter se originado de uma reencarnação mista de mula com toupeira. Cigano não era bom vigia, mas convencia. Tinha sorte. Certa vez um gatuno invadiu o jardim da casa deles durante a madrugada. O talentoso e atento cão, enquanto isso, zzzzzzzzzzz.... Por azar do invasor infeliz, seu próprio cachorro - que deveria ter vindo da mesma linha reencarnatória do Cigano -, aborrecido por ter ficado do lado de fora, desembestou a latir. Deu o alarme, o filho da mãe. No meio de todo aquele pegapracapá, o meliante deu no pé e Cigano, ovacionado pela vizinhança, virou herói do quarteirão. Apesar de não ser um cachorro muito "adjetivado", Cigano não se cansava de ficar horas apreciando o que Dora fazia. Observava-a embevecido, com a contemplação própria da fidelidade canina. Ambos se gostavam. Um dia apareceu uma cadelinha faceira e Cigano se foi atrás dela. Dora sentiu sua falta, mas no fundo imaginava que, um dia, a fidelidade aos instintos se superaria a do companheirismo. Curiosamente, depois de um ano sem o canino, ela notou que sua vida mudara. A promoção no escritório saiu. Acertou-se com Ivo, que a cada dia parecia mais culto, atencioso e bem-humorado. Seu ciclo menstrual voltou à cronologia de antigamente. Só que restava pela casa um vazio desconfortável. Manhã de segunda. Caía outra chuva torrencial. Dora estava de saída para o trabalho e atrasada mais uma vez. Entrou no automóvel, mas não pôde sair porque algo a impedia de fazê-lo. Deslizou a mão pelo rosto e, desanimada, olhou de relance para o lado. Tornou a olhar. Seus olhos depararam-se com a mesma imagem de há uns meses atrás. Cigano?! Não, não era ele. Essa outra versão feminina, bem mais jovem, dócil e tranqüila, possuía uma semelhança impressionante com o ex-companheiro de Dora. Até a pinta preta da língua era igual. Passados os primeiros minutos após o encontro, Dora afagava carinhosamente a cabeça daquela doce herança enquanto telefonava para o socorro mecânico solicitando a troca do pneu do carro.

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