MORTES
EM ABRIL
Sérgio Galli
(ao meu avô João Parreira, com saudades)
A morte sempre nos pega de surpresa. Não marca hora nem manda aviso. Vem abrupta. Um fato, ato inexorável. O enigma que a envolve é o mesmo é o mesmo que cerca a vida. Desde o nascer vida e morte nos acompanham num debate dialético. Convivência cheia de conflitos. Todas essa elucubrações são uma tentativa de explicar o estado de pasmo e perplexidade que fiquei ao receber a notícia, em meio à dança burocrática dos carimbos que continuaram seu bailado como se nada tivesse acontecido, do falecimento do meu avô materno.
Isso foi em abril, mês que ficou conhecido pelos versos iniciais do T. S. Eliot no poema "A terra devastada": "abril é o mais cruel dos meses..." Vejamos. Puxo pela memória alguns nomes: em abril de 1930, mais precisamente dia 14, morria o poeta russo Vladimir Maiakovski, Em 1980, o escritor e filósofo Jean Paul Sartre. Sua mulher, Simone de Beauvoir, também escritora, morreu em abril deste ano. Um dia depois, o dramaturgo Jean Genet. E aqui em nossas plagas tupiniquins, o herói da Inconfidência Mineira, Tiradentes. Ano passado, 21 de abril, o mesmo dia da morte de Tiradentes, terminava a agonia de Tancredo Neves.
Meu avô pode não ter sido tão ilustre, mas a seu modo deu sua contribuição à cultura, ao País. Um herói anônimo, tal qual a maioria dos brasileiros, que surdo e calado ajuda a construir o Brasil. Foram 92 anos de vida bem vivida, bon vivant que era. Uma existência e tanto. Quase um século em que assistiu e participou de acontecimentos marcantes do século que terminou. Um século cheio de transformações quase que impossíveis de se acompanhar.
Meu avô sempre foi, até os últimos momentos de sua longa vida, um homem ativo e participante. Lúcido e tranqüilo. Lia os jornais todos os dias. Estava, pois, sempre atento, sintonizado com o seu tempo, com a realidade. Homem de opinião, sempre posicionava-se, principalmente sobre questões políticas. Foi prefeito de Analândia, cidade pequena do interior paulista. Um clássico liberal. Minha prima emenda: um anarquista graças a Deus. Liberal anarquista, enfim. Um rótulo que define bem a dimensão de seu pensamento, de seu caráter. Mas sempre um democrata. Crítico do golpe militar do 1964, do autoritarismo e da ditadura, saudou com entusiasmo os ventos da redemocratização do País, iniciada com a Anistia, em 1979 (alguns diriam que a queda da ditadura começou com o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, não importa). Era favorável à legalização do Partido Comunista. Tinha a vocação e a convicção na liberdade e no respeito à opinião contrária. Tolerante.
Além desse viés político, tinha o lado erudito. Leitor perspicaz admirava Machado de Assis. Apreciador e defensor da cultura. Devo-lhe um presente inesquecível, o romance"Guerra e Paz", de Leon Tolstoi, livro que me deixou marcas profundas.
Desculpem leitores se esta crônica esta um pouco pesada, emotiva, foi escrita no turbilhão dos triste acontecimento. Agora seu coração democrático repousa. Voa livre. Brilha, estrela perdida na imensidão do céu infinito. Deixa a terra arada e semeada. Frutos amadurecidos. Como tudo nesse mundo, a morte também é uma transformação. O fim é o começo. Cidadão comum, cidadão do mundo, que com igual valor ao dos grandes homens, deu seu esforço pessoal, seu pensamento para a caminhada da aventura humana. Numa sociedade em que predomina o egoísmo e o individualismo exacerbado isso não é pouco. Agora há a continuação. Há os netos e bisnetos. Há a esperança de que possam viver num mundo melhor.
(Essa crônica foi escrita originalmente em abril de 1986. Reli, fiz algumas poucas alterações, e creio que está atual e dentro do tema proposto. O que vale é a espinha dorsal do texto. O acaso ou a coincidência apareceram em um outro abril, desta vez em 1998, quando minha avó paterna faleceu com 91 anos de idade).
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