DECIFRA, SE FOR CAPAZ
Roseli Pereira
De uns tempos pra cá, eu tenho refletido bastante sobre o profundo desgaste a que certos enigmas da humanidade têm me submetido no dia a dia.
Não, não estou falando em enigmas consagrados como a origem do universo, a vida após a morte, o desaparecimento dos dinossauros, os segredos de Machu Pichu, a fórmula da Coca-cola. Na verdade, os motivos que me movem são bem outros. São aqueles fenômenos que a gente testemunha todos os dias, mas não consegue explicar nem com toda a ajuda da ciência, da filosofia e da teologia. Para falar português claro, são mistérios que a gente não consegue desvendar nem com reza brava.
Será, por exemplo, que alguém tem uma explicação razoável para o caso dos faróis que se fecham sempre que a gente está com pressa? Ou saberia dizer por que a novela das oito sempre começa às nove? Ou pode justificar a existência de bolsos nos pijamas? É claro que não, mas isso não faz muita diferença. A gente começa a enlouquecer de verdade quando resolve encontrar alguma lógica na estratégia de empresas que, embora afirmem que nos prezam muito como clientes, insistem em telefonar nas horas mais impróprias, só para relacionar uns dez motivos imbecis pelos quais a gente precisa comprar alguma coisa que elas querem vender.
Outro dia me ligaram às 7h20 da manhã para dizer que eu fui escolhida para adquirir certo cartão de crédito, numa promoção que incluía um cartão adicional. E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, a telemarketeira continuou de um só fôlego: "Esse cartão adicional vai ser maravilhoso para a senhora. Por exemplo: a senhora é casada?".
Confesso que aquilo me pegou tão despreparada, mas tão despreparada, que acabei respondendo com toda a intensidade do meu instinto de defesa, e omito aqui a resposta para não ferir a sensibilidade dos leitores.
Tá certo que eu ando bem míope, ultimamente. Mas mesmo anos atrás, quando a minha vista alcançava alguma coisa além de um palmo adiante do nariz, eu já não conseguia ver lógica nenhuma nesse tipo de abordagem.
Outro grande enigma da humanidade é a razão pela qual um vendedor de calçados tenta nos empurrar um par de tênis dois números menor que os nossos pés. Ou o raciocínio daquela dona de loja de bolsas que pára bem na nossa frente e vai apontando para as prateleiras: "Oi, querida! Aqui estão as bolsas azuis, aqui estão as marronzinhas e logo ali estão as vermelhas, tudo bem?".
Se você não acredita no monstro do lago Ness e nem no que eu estou dizendo só porque não viu com os seus próprios olhos, prepare-se. Ninguém escapa de certos fatos da vida.
Faz muito tempo que coisas dessa natureza me inquietam, mas noutra noite tive uma experiência realmente incrível, em todos os possíveis significados da palavra. Já era bem tarde e eu estava quietinha, escrevendo, quando comecei a ouvir um barulho esquisito que acontecia em intervalos mais ou menos regulares. Uma vez, duas vezes, três vezes. Chamei o cachorro e levantei para investigar. O barulho foi me conduzindo para a frente da casa, e abri a cortina da sala para ver se havia alguma coisa estranha na rua: nada de diferente, além de uma chuva gostosa. Eu já ia desistindo da empreitada quando vi um clarão seguido de fortes estalos: eram faíscas, muitas faíscas, que saiam do alto de um poste que fica uns 30 metros adiante e se espalhavam pelo asfalto.
Bem, com eletricidade não se brinca. Fui até o telefone e liguei para a companhia responsável. Ouvi longos minutos de mensagem introdutória, naveguei pacientemente pelo menu eletrônico, descobri que não havia nenhuma opção que se enquadrasse - ainda que vagamente - no meu caso e decidi esperar por um atendente. Passei por aquela sabatina toda que você já conhece, ajudei-o a desenhar um mapa de localização destacando os vinte e oito pontos de referência mais próximos e finalmente chegou a hora de contar o problema.
Foi muito rápido: em apenas quatro ou cinco minutinhos de explicações e repetições, o atendente conseguiu compreender que do alto de um poste, 30 metros adiante da minha casa, estavam saindo faíscas que mais pareciam fogos de artifício.
"Faíscas. Entendido, senhora. E os fios? Estão desencapados?".
Mesmo diante de tão estranhas circunstâncias, eu não resisti e enfrentei o desconhecido com mesmo espírito investigativo de uma Dana Scully:
"Eu não vi, filho. Não vi porque o poste está lá na rua, vários metros acima da minha cabeça, e além disso são 3 horas da madrugada e está chovendo. Mas se você quiser, eu posso ir até lá com a minha escada de cinco degraus e checar. Ou melhor ainda: eu posso telefonar de outra linha para o Corpo de Bombeiros e pedir que eles chequem para você.
O efeito foi semelhante àquele que os exorcistas conseguem quando mostram a cruz para um lobisomem. Senti o choque imediato. Senti que as influências maléficas abandonaram o pobre rapaz, permitindo que, no mesmo instante, ele descobrisse que quatro dos meus vizinhos já haviam comunicado a ocorrência e que uma equipe técnica já fora destacada para verificar. Acredite se quiser.
É por essas e por outras que ninguém jamais vai conseguir me convencer de que fatos como esse são naturais. E se não são naturais, só podem ser sobrenaturais. E sendo sobrenaturais, são inexplicáveis. E em se tratando de coisas inexplicáveis, eu juro que preferiria conviver apenas com os já consagrados segredos de cozinha da tia Dorinha. Porque esses, ainda que eu não decifre, pelo menos posso devorar.
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