ENIGMAS DO PASSADO
Paulo Henrique
Pampolin
Era sempre assim, chegava da escola por volta de uma da tarde, sentava a mesa ainda pensando naquele lanche maravilhoso que a Renatinha comia na hora do recreio. Comia gulosamente a simples, porém saborosa comida da mamãe. Terminada a refeição, tirava o uniforme do colégio, pegava a caixinha de engraxate em formato triangular, onde continha escova, flanelas, graxa preta, marron e incolor, saía para a rua. Hora de trabalhar. À noite era hora de fazer as lições da escola.
A vida de engraxate aos oito anos, naquela cidadezinha do interior começou, porque por ironia do destino, no regime militar, quem como eu estudava em escola pública, tinha obrigação de se matricular no colégio mais próximo de casa. E no meu caso, apesar de criança carente, morava próximo ao colégio onde a elite da cidade estudava.
Assim, convivia com aquelas crianças com seus lanches deliciosos no intervalo sem saber o gosto que aquilo tinha. Mas que o cheiro era bom, ah isso era. O da Renatinha era meu predileto.
Pela manhã quando me arrumava para ir à escola, sempre dizia:
- Pai, dá `milão`?
Nada mais era do que a antiga nota de um cruzeiro, ou mil cruzeiros, não lembro bem. Não dava para comprar um lanche como o da Renatinha, até porque o dela a mãe que fazia, mas era o suficiente para um doce qualquer no seo Getúlio, o pipoqueiro.
Caminhoneiro, meu pai não tinha como me dar milão, afinal, somos oito irmãos, assim de milão passaria a oito `milões`. Impraticável. Como no velho ditado de não dar o peixe, mas ensinar a pescar, um domingo, papai pegou velhas caixas de madeira, prego, serrote e martelo, algumas horas depois estava pronta minha caixa de engraxate. Robusta, pintada de azul, lugar de apoio para por o pé do freguês enquanto engraxava e claro, também servia para apoiá-la no ombro na hora de carregar. Papai me entregou junto com a frase "Com essa caixinha, você ganhará quantos ´milões´quiser."
Não entendo porque, mas só conseguia carregar a caixinha no ombro esquerdo, o que me deixava torto e com bolhas no ombro. Do lado direito ficava esquisito e incômodo, não dava.
Na rua, minha primeira preocupação na hora de trabalhar era não encontrar nenhum companheiro de escola. Morreria de vergonha se isso acontecesse.
Aos poucos, minha timidez foi inclusive me impedindo de oferecer o serviço para as pessoas na rua. Sempre achava que um daqueles homens de chapéu do Roy Rogers e fivela de prata iriam brigar comigo caso oferecesse o serviço a eles. Eram sisudos e metiam medo.
Com isso, meu negócio foi afundando. Os tantos ´milões´ prometidos por papai, simplesmente não vinham e continuava a me alimentar com os olhos no sanduíche dos outros.
Num belo dia, comentei com meu irmão imediatamente mais velho que eu, sobre meu receio de oferecer os serviços aos fregueses. Com um olhar sacana de bom negociador, disse:
- Vou te ajudar. Irei com você, ofereço os serviço ao freguês, se ele aceitar, você engraxa e me dá metade do dinheiro.
Achei aquilo o melhor negócio do mundo. Estava resolvido meu maior problema. Meu irmão era um santo!
Colocamos logo em prática nossa idéia. Meu irmão, com pinta de empresário, três anos mais velho que eu, com habilidade oferecia o serviço e convencia o freguês, em seguida eu dava o trato no sapato.
Os ´milões´ foram entrando de forma que além do doce, ainda podia comprar figurinhas de futebol cards ou até mesmo caixinha da sorte. Isso porque ficava com apenas 50% do lucro da ´empresa´. Papai estava realmente certo.
Hoje, meu irmão é um grande líder na empresa que trabalha. Fotógrafo, substituí a caixinha por uma bolsa com câmera, lentes, flash, que levo por toda parte. O ombro, continua o mesmo, às vezes com bolhas, mas sempre o esquerdo. Percebo que algumas pessoas nasceram com um dom natural para algumas coisas, uns para liderar, outros para carregar, às vezes uma caixinha, às vezes uma bolsa. O tempo não altera algumas características.
Enigmas ainda me atormentam. Por que só consigo carregar a bolsa do lado esquerdo? Por que hoje, aos 31 anos, ainda sinto o cheiro do lanche da Renatinha?
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