ENIGMA
Marco Brito

Andava de cabeça baixa, sapatos chapinhando em poças de lama.Vento cortante, chuvisco frio. Tão frio e cortante quanto o punhal que escondia por baixo do sobretudo. Caminhava sem enxergar onde pisava. Pisava em tudo, em todos. Pisava na lama da sua vida (que vida?).

Noite avançada. Avançava ele sem saber para que lado ir, que sentido tomar. Parou numa esquina, escutou os ruídos que a noite fazia e pareceu decidir-se. Enveredou por uma viela, sentiu o odor fétido de fossas abertas afogadas nas suas próprias imundices. Atravessou rápido, com extrema agilidade que contrariava o peso e tamanho do seu corpanzil. Com um pontapé atirou para longe uma ratazana que cortara seu caminho. Saiu do beco, pegou a ladeira que vinha à sua direita e novamente parou debaixo de um poste que sustentava uma lâmpada trêmula indecisa em manter-se viva ou apagada. 

Abalou-se ao ouvir o apito alto e estridente que descia a ladeira às suas costas. Demorou alguns segundos, estremecendo novamente, para distinguir o apito do cargueiro que desgarrava-se do porto àquela hora. Fez meia-volta sobre seus calcanhares e rumou para a beira do cais.

As luzes amarelentas da rua do cais indicavam a zona da cidade. O cheiro de peixe misturava-se com os cheiros de comida e bebida. Os perfumes baratos das mulheres da vida misturavam-se com o suor ardido de homens rudes que debruçavam-se por sobre seus copos de cachaça.

As mulheres da vida misturavam-se com a vida de todos da beira do cais.

Parou à porta de um daqueles bares. Retardou sua entrada ao salão a fim de acostumar a vista à penumbra ambiente. Seus pulmões encheram-se da atmosfera carregada de álcool e tabaco barato. Ajustou o gorro da cabeça fazendo com que o mesmo quase encobrisse os olhos. Dirigiu-se direto para o fundo do salão passando por entre as mesas espalhadas sem nem ao menos prestar atenção a quem levantou suas vistas para acompanhar a passagem do seu vulto. Sentou-se num banco alto, encostou as costas à parede, deixando-se ficar de frente à entrada. Pediu uma dose dupla de conhaque e, antes mesmo de terminá-la num único trago, já tinha agarrado o gargalo enchendo novamente o copo. Seus olhos arderam e lacrimejaram por instantes após o que permitiu-se relaxar um pouco enquanto que o calor da bebida percorria seu corpo enregelado. Não teve pressa em terminar seu segundo copo. Passeou seu olhar pelo pequeno palco onde uma figura magra, com pernas descarnadas dançava enrolada no próprio cachecol. A música abafava todos os outros ruídos. Abafava o som das gargantas dos homens, as risadas das gargantas das mulheres...

Saiu à rua. A madrugada já vencia o estertor da noite. O cinza dos céus começava a vestir-se das cores do dia. 

Os passos deixavam para trás as lembranças da noite enquanto que acompanhavam a sombra que se dirigia para o sol que estava a nascer no horizonte....

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