ONTEM É HOJE MESMO
Bruno Freitas
Sabe aqueles assuntos antigos e inesperados, os quais você mesmo já esqueceu e nem se lembra mais quem foi o
culpado? Daqueles assuntos jamais imaginados, naquela perspectiva totalmente diferente da sua, mas nem por isso errada. Pois, na hora em que você estiver calmo e tranqüilo, eles virão à tona com força total e despedaçarão todas suas esperanças de um dia calmo e tranqüilo.
Jamais mencione qualquer fato que a faça lembra dos assuntos mais antigos e conseqüentemente, mais bem escondidos, no fundo da memória coletiva do casal, como um enigma mal resolvido, assombrando suas consciências.
Sabe aqueles dias em que você disse alguma coisa que não devia ter dito? Pois é, fique calado. Antes ficar quieto e correr o risco que ela te ache um idiota, do que abrir a boca e
deixá-la com toda certeza. Não dê ouvidos às suas provocações, conte até dez e saia do recinto com ar de superioridade, nariz empinado e o queixo nas alturas. Não existe nada que irrite mais as mulheres do que tal atitude.
Prepare-se porém para o contra-ataque feminino. Pois, elas usarão todos aqueles assuntos previamente mal-resolvidos e conseqüentemente esquecidos n'algum canto da casa. Se você pretendia assistir a algum jogo de futebol, algum programa especial de reportagens, ou qualquer capítulo de sua série preferida, esqueça. Ela não vai deixar...
Vai entoar a velha ladainha de que você não sabe o que é cumplicidade, e que nem dá mais bola pra ela, e como uma mosca varejeira vai circular sobre sua cabeça e atordoar seus sentidos, com aquela estória de que ela não havia sido educada em berço de ouro, pra viver uma vida desregrada e apertada. Que sua mãe sempre dizia que pai pobre é destino, e marido pobre era burrice. Que se arrependia de ter encontrado contigo, e queria por tudo na vida que fosse tudo um sonho. Que você não mais servia e teria de desdobrar-se em dois pra
atendê-la como fosse necessário. Que você era o escárnio de sua vida, já que nada fazia além de prostrar-se de frente à TV pra esperar o enterro passar. Que ela já não mais agüentava a pasmaceira da vida levada, que você nada mais fazia para
alegrá-la. A cumplicidade não mais existia e os dias de namoro até tarde da noite estavam há muito esquecidos.
Fazia anos que não saíam pra passear de mãos dadas e alegrarem-se ao sabor do sorvete da esquina. Verem os pássaros cantando e curtirem o fim da tarde à beira do
pôr-do-sol no lago do parque. Que um jantar romântico pra dois era só na época de namoro, que agora que ela era tua em juízo, não era mais preciso de acalantos, namoricos nem penduricalhos. Que agora você era o legítimo esposo e já não precisava nem de surpresas, nem galanteios. Que bastavam os afazeres de casa, e que você não queria uma mulher, mas uma mãe. Que devia ter ficado em casa, na vidinha mais ou menos que levava ao lado da mamãe. Que estava cansada de bancar a forte e poderosa, e que isso não era pra ela. Pois, já que havia se casado, queria uma compreensão especial, e queria ver a maldita cumplicidade. Não agüentava mais os suplícios de ter que suportar as agruras da vida, e ainda por cima carregando um marmanjo nas costas. Ainda por cima, de ter que suportar o peso de suas próprias tarefas, ainda ter que suportar a de outro adulto, saudável e completamente capaz. Se ainda por cima, esse adulto fosse deficiente, ou tivesse alguma limitação, mas não... Era perfeitamente capaz de fazer quase tudo... Menos a capacidade de dividir, ou compartilhar... Não agüentava mais ver essa televisão ligada, enquanto a casa ia ladeira abaixo, e a vida passava a mil, lavando todo o resto que tinham. Não podia suportar o peso da realidade, e manter-se de pé para receber o golpe fatal da vida. Já estava cansada de dizer que a cumplicidade era uma coisa de duas pessoas, e que era preciso mais além do que uma cumplicidade unilateral. Não agüentava mais as noites mal dormidas, devido aos decibéis dos roncos do companheiro, que nada fazia, além de desabar como pedra e dormir a noite inteira sem remorso algum. Não podia acreditar nas escolhas da vida, já que ela havia acabado mal-casada e infeliz, numa prisão de papel, sem poder usufruir das mesmas vantagens que você. Só ela fazia os sacrifícios, você: NADA. Jamais havia feito um sacrifício qualquer, e ela, coitada e infeliz, fazia todos sacrifícios esperando sua cumplicidade em vão.
Lá vem o papo da cumplicidade de novo... Deixa pra lá... Continue quieto e calado, que é o melhor que você faz. Ela vai alugar seus ouvidos com a ladainha até o dia seguinte, e mais por uma semana além... Depois, você torce pra ela esquecer, e jamais voltar a mencionar esses assuntos. Porém, não vá pensando que esses assuntos jamais voltarão à tona. Sua sorte vai depender do dia que sua companheira tiver no trabalho, do dia em que ela estiver na tabelinha, da burrada do motorista da frente, da cabeça dura da estagiária, do imbecil e estúpido chefe, da unha encravada, ou do fio de cabelo quebrado. Com todas essas variantes, você não vai quere ficar dando bola pra estatísticas e previsões, não é?
Nesses dias, o melhor a fazer é se esquivar das acusações e desviar das rajadas de ódio e saraivadas de cuspes. Você tem de fugir do confronto direto, evitar o olho a olho e o 'tet-a-tet'. Ignorando toda e qualquer ignorância. Inaugurando uma era de felicidade plena da imaginação viajando a mil léguas de distância, longe da ladainha de toda mulher, capaz de transformar o dia de ontem em hoje mesmo...
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