FILHO DA PUTA
Alberto Carmo
O sol já entrava pela cortina rosa. O vidro, embaçado
pela neblina da manhã, não existia. A brisa fria soprava até a cama em tufos
invisíveis. Sobrevivia à vergonha, aos risos de escárnio, bafejados dia após
dia. O orgulho irado jurava de morte cada olhar torpe.
Mestiço sem pai, dos olhos arregalados e cabelos encrispados. Nem pardo era -
tinha algo de incolor nos gestos. Quando chorava ao espelho não via lágrimas,
só rastos de sangue entre a barba mal feita. Quantos espelhos partiu com socos
epiléticos, quantas cicatrizes buscou.
Lia Kafka em tom de inveja daquele pobre doente humilhado. Invejava aquela
fraqueza desamparada - ele, que sequer sofreu do desamparo paterno. Filho de um
nada, órfão de um momento, odiava a descendência e, ao mesmo tempo, queria
idolatrar aquele desconhecido. Amou aquela esperança escondida entre as linhas
até o desespero. Rasgou a última página de cada livro lido - a tristeza
incompleta, o destino fustigado, o desfecho melancólico.
A imagem do quarto trancado ao chegar da escola, a esperança sempre presente a
cada forasteiro. Os doces deixados sobre a mesa, o afago na cabeça - lembranças
dos olhos brilhantes, logo abreviados com carinho materno. A luta infinita dos
sons gemidos e chorados, a revolta e o medo, um sempre que nunca chegava, o sono
entre as tábuas quase surdas da parede.
As luzes ofuscavam-lhe a voz - chorava. Tinha tanto a dizer e mal compreendia o
que lia. Eram centenas de olhos e a mesma face sorridente. Traçava rugas mal
dormidas em cada rosto. Mantinha o sorriso delicado e sofrido. Tecia cachos
encaracolados, longos decotes, cores berrantes, perfumes baratos.
A cama amassada, o peito acolhedor, eram-lhe presentes nas entranhas que abria.
Tripas, miúdos humanos, que tantos colheu. Decifrava cada movimento que ouvia e
tocava - músculos inertes em espasmo. Seres rotos que o ensinavam, odores
toscos de abandono. Cada peça no lugar esperado. Odiava abrir-lhes o coração,
daqueles que lhe eram irmãos desgarrados. Sufocava o grito agudo, apagava as
perguntas que faria ao cérebro já distante.
Cobria-lhes com ternura. Urrava no silêncio do quarto, entre colchas velhas e
parcamente perfumadas. Misturava saliva às lágrimas, socava a madeira calada.
Comprava balas todos os dias. Deixava sobre a mesa. Não queria abandonar a
pobreza. Queria a luta, o travo diário, a esperança.
A platéia silenciou. Soletrou o discurso preparado, encolheu a emoção. Jurou
salvar mil vidas, amansar todas as dores. Jurou com olhos cegos, mãos
estendidas. Fugiu dos abraços, alcançou a porta dos fundos. De lá correu em
soluços. Misturou a promessa e a saudade. Gritou vivas e pragas.
Noite alta, céu tristonho. Pulou o muro em porte olímpico. Trazia nos braços
as flores do triunfo. Caminhou sorrateiro e destemido. Já não era tempo de
lamentar. A vitória final, o sonho plantado nas noites de insônia, era chegado
o momento.
Depositou uma rosa e o diploma no túmulo da mãe amada. O mundo amanhecia e era
preciso curar, parir novos pais.
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