O FILHO DO EXORCISTA
Paffomiloff
Nas manhãs de agosto, meu pai costumava me acompanhar até a escola, a caminho do seu serviço, na abadia. Caminhávamos sem trocar palavra, mas eu podia sentir sua atenção, policiando meus passos e meus olhares, os imãs do pecado, como ele sempre dizia.
À porta da escola, ele sempre respondia meu sorriso com seu franzir de cenhos, mas mesmo assim nunca desisti desse pequeno gesto, mesmo sabendo que um dia seria vazio.
Na manhã do dia treze, o sacristão apareceu correndo, com a graça de um pato que levou um tiro, interrompeu nossa rotina a poucos passos do portão de nossa casa.
- Reverendo, algo horrendo ocorreu no casarão de Shamus O'Toole.
- Possessão? - perguntou meu pai.
- Sim, senhor.
- Mas... ainda nem é outubro.
- O mordomo disse que a mobília do gabinete está em polvorosa.
- Shamus não aprende, mesmo. Pudera, ele não é britânico.
Meu pai coçou o queixo. Olhou para mim, pensando se deixaria que eu andasse sozinho pelas ruas, numa manhã de agosto, mês dos demônios e do festival de Lammas, como adorava intitular. Estalou a língua e fez um gesto para que eu o acompanhasse.
O esbaforido e desengonçado sacristão era uma verdadeira comédia ambulante, poderia facilmente participar de um daqueles filmes novos, produzidos na América, do Buster Keaton ou Harold Loyd, os quais só posso assistir quando meu pai está viajando, pois ele vê o humor com grande desconfiança.
O casarão dos O'Toole era sofisticado e sombrio, como melhor convém aos sítios assombrados. Atendeu-nos um criado impávido, certamente londrino, jamais irlandês, como observara, com muito apuro, meu pai. Ele sim, era britânico.
- Reverendo Neville - cumprimentou, abrindo a porta o suficiente para meu pai e eu entrarmos, mas fechando-a na cara do escandaloso sacristão - meu patrão gostaria de recebê-lo pessoalmente, mas receio que...
- Compreendo - interrompeu meu pai, entregando-lhe o seu chapéu e o sobretudo - leve-me ao local.
Shamus perdera, há coisa de dez anos, sua amada esposa Isobel. Desde então, nos finais de abril e outubro, respectivamente noites de Santa Walpúrgia e véspera de Todos os Santos, ele tentava se comunicar com ela através de um vidrinho, que se movia sobre um tabuleiro cheio de letras e números. Como sofresse de tremedeira crônica, que lhe acometia antes dos dias chuvosos, ou seja, quase sempre, o vidrinho virava e os demônios escapavam, infernizando o local.
Meu pai entregou-me um crucifixo dourado, recomendando que não me esquecesse de mantê-lo em riste, durante o exorcismo.
Seu comentário sobre esquecimento, contudo, despertou uma lembrança terrível na minha mente. Enfiei a mão no bolso, procurando, em vão, o tinteiro que levara para casa, no dia anterior, para a lavagem mensal. "Ai de mim, deixei o tinteiro em casa. O mestre escola vai arrancar-me a pele".
Consternado, seguindo os passos resolutos de meu pai. De vez em quando, olhava para os lados, avaliando a faustosa decoração, com peças antigas em mogno e madeiras que desconheço, talvez oriundas da distante América do Sul, talvez do Brasil, terra de cobras e católicos, como adorava dizer meu pai.
Chegamos ao gabinete de O'Toole. A porta, em folha dupla, foi aberta lentamente, revelando uma cena assombrosa: entre nuvens de pequenos objetos que desenhavam círculos no ar, os móveis moviam as pernas como aquelas dançarinas francesas, que vi uma vez, de relance, antes que meu pai tapasse meus olhos, num cartaz em Trafalgar Square. Tive de conter o riso, pois achava o espetáculo muito engraçado, mas sabia que a coisa era séria, já que papai rilhava os dentes, o que era raro, e até o impávido mordomo, por mais londrino que fosse, tinha uma gota de suor deslizando pela têmpora, embora a casa fosse fria, como convém às mansões assombradas.
Próximo ao teto, a desesperada figura do pobre Shamus, ainda com pijama, girava numa cadeira de braços lavrados e alto espaldar. Parecia uma pipa arrebatada por uma corrente de ar, como as que os meus amigos costumam soltar, na praça, mas que meu pai me proíbe. O céu é para as aves e anjos, rosnava ele, com freqüência.
Chegara o grande momento. Nunca vira uma sessão de exorcismo. Levei um tapa na cabeça, que fez voar meu chapéu. Olhei para papai, sem compreender o motivo da punição "Será parte da cerimônia?", questionei-me, até perceber que, não só esquecera de tirar o chapéu, como também não mantivera o crucifixo em riste.
Meu pai sacou a bíblia do bolso e uma cruz sobressalente, avançando com galhardia para dentro da sala repleta de abantesmas. "Eu os esconjuro!", gritava ele, "Em nome de Deus". Passou a repetir trechos aleatórios das escrituras, alguns repetidos, outros errados, mas que mantinham o sentido original, até que a mobília amainou seus ímpetos coreográficos, enquanto os pequenos objetos foram descendo ao chão, em espirais.
Um espantoso estrondo abalou a casa assombrada dos O'Toole, quando a cadeira de Shamus veio abaixo, espatifando-se. Meu pai e o mordomo apressaram-se para verificar se o infeliz necromante estava tão mal quanto sua cadeira, reduzida a lascas.
Nesse curto momento de distração, percebi, junto ao meu pé direito, um belíssimo tinteiro, novo em folha, que veio rolando. Antes de ter tempo para pensar no que estava fazendo, abaixei-me e apanhei o objeto, fechando-o com a tampa, que felizmente estava amarrada por uma correntinha. Escondi-o no bolso. O alívio que eu senti, de não apanhar do mestre escola, não obliterou a culpa pelo ato do furto.
Um novo tapa acertou minha cabeça. Olhei para meu pai, imaginando se ele vira meu ato pecaminoso.
- Mantenha o crucifixo em riste, seu tolo - admoestou-me - ainda falta salpicar a água benta.
Não, não vira nada. Respirei aliviado e ergui o crucifixo.
Ele sempre fora daquele jeito: enquanto os pais das outras crianças carregam uma garrafinha de Brandy, ele guarda um vidro de água benta no bolso do sobretudo. Só naquele dia entendi o motivo. Foi mandando as gotas sobre a cara mobília.
Só então pude ver o velho Shamus, tentando erguer seu esquálido corpo, para pedir, em vão, que sua mobília fosse poupada daquela lavagem. Como ficara por horas a fio de castigo na cadeira giratória, estava tonto como um peru antes do abate, por isso voltou a cair no chão.
Meu pai apanhou a tal placa com letrinhas, e jogou-a na lareira.
- Queime essa coisa - ordenou ao mordomo.
- Com prazer, senhor - respondeu o londrino, olhando, com algum desânimo para a balbúrdia que teria de arrumar.
Meu pai cobrou a conta: dois soberanos de ouro, considerando o imenso incômodo, a reincidência e a excelente situação financeira do irlandês. Shamus tentou falar alguma coisa, que devia ser uma tentativa de negociação, mas o mordomo entendeu como uma anuência, e as reluzentes moedas abandonaram o estojo de despesas, ainda molhado pela água benta, direto para o bolso de meu pai.
Saímos apressadamente, e apertamos o passo até chegarmos à escola Dunsany, mas os portões já estavam fechados, e nem um pedido do rei George seria capaz de abri-los.
Exultei com aquela situação. Mesmo que meu pai não quisesse, eu teria uma agradável manhã livre, brincando na grama, apanhando insetos e...
- Você ficará no quarto, estudando - sentenciou meu pai, previamente, para apagar o brilho de meu olhar, durante o retorno à nossa casa. Ele estava atrasado para seu serviço, e um pouco de seu mau humor sobrara para mim.
Fiquei triste, mas não tanto quanto ele queria, pois eu tinha uma miniatura de planador, igualzinho ao de Otto Lilienthal, no qual estava trabalhando em segredo. Acabara de terminá-lo, faltava apenas pintar o bonequinho que, embora soubesse ele nunca conheceria a liberdade dos ventos, assim como eu.
Olhei pela janela do meu quarto, no segundo andar, vendo a figura sombria de meu pai se afastando. Começara a chover, como preconizara a tremedeira de Shamus.
Acabei os deveres. Exercícios e mais exercícios sem graça, como convém aos trabalhos matemáticos, acompanhados da entediante história britânica, que me valera umas boas sovas, pois confundira Crommwell, assessor corrupto, que o rei Henrique VIII mandara à morte, com Oliver Crommwell que mandara o rei Carlos I à morte. Comecei a cantar o velho mnemônico dos reis britânicos:
Willie Willie Harry Stee
Harry Dick John Harry three;
One two three Neds, Richard two
Harrys four five six....then who?
Edwards four five, Dick the bad,
Harrys (twain), Ned six (the lad);
Mary, Bessie, James you ken,
Then Charlie, Charlie, James again...
Will and Mary, Anna Gloria,
Georges four, Will four Victoria;
- Droga - falei alto - esqueci do resto.
- É muito fácil - disse uma voz, vinda do meu bolso - é assim: "Edward seven next, and then Came George the fifth in nineteen ten".
Dei um salto e caí da cadeira, como o velho Shamus. O tinteiro pulou do meu bolso para o chão, onde ficou emborcado. Havia me esquecido completamente do objeto furtado.
- Sabe garoto - a voz vinha do tinteiro - você me salvou do exorcismo, estou em débito com você.
Rastejei até ele. Não ousei tocá-lo, pois imaginava o que fosse: um terrível demônio devorador de almas, capaz de silenciar um velho irlandês, tarefa muito difícil, como sempre dizia meu pai.
Para minha decepção, dentro do vidro havia apenas uma minhoquinha escura, retorcendo-se.
- Você é um demônio?
- Aceitaria um 'mais ou menos' como resposta?
- Receio necessitar de uma explicação mais detalhada.
A minhoquinha pigarreou. Era estranho ver um verme pigarreando, mas não tão estranho quanto vê-lo falando, por isso não estranhei.
- Na verdade eu era um espírito celta, morava na floresta onde hoje ergue-se esta cidade. Fui seqüestrado por aquele irlandês maluco.
- Você é um brownie ou um duende, como Puck, da peça de Shakespeare?
- Aceitaria um 'mais ou menos' como resposta, dessa vez? Minha categoria sempre foi tão arisca que nem recebeu classificação nos compêndios.
- É aceitável.
- Devo retribuir a sua gentileza, embora receio que esteja morando na casa de meu maior inimigo.
- Bem, papai costuma guardar a cruz, a bíblia e a garrafinha de água benta no sobretudo.
- Só de paletó, ele fica inofensivo?
- Para você, sim - falei, passando a mão nos lugares em que papai me batera, de manhã.
Tive uma idéia que me pareceu extraordinária, naquele momento. Levantei-me e apanhei minha miniatura de planador.
- Demônio, veja isso aqui. Sabe o que é?
- Não e sim.
- O que quer dizer com 'não e sim'?
- Que não sou um demônio, e que sim, conheço o planador com que o alemão Otto Lilienthal voou, pela primeira vez, há duas décadas.
- Você é bom em história.
- Obtenho os dados direto da mente das pessoas.
- Isso não é ilegal?
- Considerando que os humanos usam a tortura, para entrar na mente dos outros, meus métodos são bem mais gentis.
Na verdade eu não queria conversar, tinha em mente alguma coisa muito específica. Abri o tinteiro, sem pensar no risco que eu estava correndo, apanhei a minhoquinha entre os dedos.
- O que pensa que está fazendo? - espantou-se o bichinho.
- Vou colocá-lo neste planador, e você vai fazê-lo voar, como fez com a cadeira do velho Shamus - tentei socar a minhoquinha dentro do boneco de Lilienthal, mas ele não parava de se mexer.
- Não vou entrar nesse troço - resistiu o demônio.
- Você disse que me devia, faça o que estou pedindo.
- Garoto! Não atendo a pedidos, mas a necessidades.
Sentei-me, desolado. Como podia ser aquilo? Eu estava discutindo com uma minhoca? Estava quase chorando.
- Eu necessito de que você entre no meu planador.
- Terá de ser mais tarde.
Estava para dizer que os adultos sempre acham que nossas necessidades podem ficar para mais tarde, quando me questionei se aquela minhoca poderia ser realmente chamada de 'adulto'. O segundo motivo para interromper as negociações foi o barulho da porta da frente se abrindo.
- Acho que seu pai chegou cedo - tremeu o demônio.
Apressei-me em empacotar o planador, pois papai sabia que aquilo era projeto de um alemão. "Mas ele nem estava vivo quando começou a guerra", argumentei, certa vez, para nunca mais, já que o contra-argumento fora uma surra perfeita, do ponto de vista de técnicas didáticas.
Durante o atabalhoado empacotamento, contudo, ouvi um terrível estalo, que ecoou no meu coração.
"Não".
"Meu planador".
Pensei em abrir o pacote, para avaliar a extensão dos danos, mas meu pai poderia chegar a qualquer momento. Talvez a dor da surra fosse maior que a dor no meu coração, naquele momento.
- Seu pai acaba de tirar o sobretudo - informou o demônio.
- Bom para você - respondi, enquanto minhas lágrimas banhavam o pacote.
Choro também era proibido naquela casa. Era pouco britânico. Mas ainda assim, eu não podia conter meus olhos, e a surra por lágrimas era menor que a surra por planadores alemães.
- Eu sei do que você precisa, garoto - disse a minhoquinha, desaparecendo no assoalho.
Estava me lixando para ele, me lixando para a escola, para todo mundo. Meu planador se fora, e eu não podia conter as lágrimas pouco britânicas. Nunca seria um mordomo londrino.
A porta de meu quarto se abriu, e a silhueta de meu pai se recortou contra a luz do corredor. Sua voz profunda de pastor ecoou:
- O que está escondendo?
Não me movi. A surra por não se mover era um pouco maior que a de por lágrimas pouco britânicas, mas era menor que por construção e guarda de planadores alemães.
Ele avançou e puxou-me o pacote. Eu estava em estado de choque, por isso não reagi. Já teria acumulado três motivos para surra, mais um só valeria um desconto por quantidade, como faz o senhor Desmond, do mercado, que cobra menos quando se levam mais pães.
Meu pai abriu o pacote e olhou o conteúdo. "Estou lascado", pensei.
Ele nada falou, apenas colocou as peças cuidadosamente sobre minha escrivaninha, sentou-se na cadeira e recurvou seu corpo esguio sobre o pequeno modelo, o qual começou a consertar.
Levantei-me e cheguei mais perto, fascinado com sua habilidade.
- Sabe, filho - ele disse baixo - Terei de abandonar as atividades sacerdotais.
Senti uma vontade de tocar em seu ombro, mas não sabia se era um gesto britânico o bastante. Também não sabia se a estranha decisão de meu pai tinha algo a ver com os eventos da manhã.
- Não aceitam pastores como eu na igreja.
- Como assim? O senhor é o pastor mais íntegro, mais... rígido... - tentava animá-lo, mas escassearam adjetivos elogiosos, pois a partir dali, seriam mentiras, que valiam uma sova maior que a de planadores alemães, suponho.
- Mas mesmo assim não aceitam - disse ele, passando a mão no meu rosto, uma sensação que eu não sentia há três anos, desde que mamãe morrera.
De repente, o planador tomou vida, e saiu voando, em círculos, pelo quarto, junto com meus lápis e utensílios pequenos, que o seguiram como um rastro. Os móveis passaram a dançar como aquelas bailarinas francesas, e tive uma vontade inexplicável de rir. É claro que não o aceitariam mais na igreja.
Nenhuma igreja aceitaria um pastor possuído.
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