QUASE UM CONTO DE FADAS
Ubirajara Varela

Desde a separação, ela vivia sozinha. Quando a noite chegava, de volta dos afazeres diários, trancava muito bem as entradas da casa, só por precaução. Afinal, mulher sozinha e desquitada deve se resguardar bem. Sua vida estava bastante confortável e movimentada: trabalho, aula de body combat, pintura, história da arte, curso de pára-quedismo, compras no shopping, cinema. Ainda assim, não era feliz. O que não atrapalhava seu ótimo humor. Não deixava a peteca cair, como ela própria gostava de dizer. 

Numa quarta-feira dessas, começou a receber telefonemas estranhos. A respiração se ouvia do outro lado da linha, mas ninguém se identificava. Provavelmente, um tarado. Continuou recebendo as tais ligações até o sábado, quando o sujeito resolveu se revelar. Primeiro ficou mudo, só respirando. Depois falou. Era o ex-marido. Havia tomado umas poucas cervejas, suficientes para alterar o volume da voz.

-Carmem, você tem que me aceitar de volta. Minha vida sem você é um atropelo só.

-Que é isso, Eustáquio?! Atropelo é você, seu infeliz. Escuta aqui... quer dizer que é você o safado que anda me ligando todos esses dias?!

-É que eu estava sem coragem pra assumir. Eu não consigo viver longe de você. Eu te amo, minha linda.

Havia muito tempo que não se falavam, e a voz dele, os elogios, mexeram um pouco com ela. Mas Carmem continuou firme na sua posição de mulher resolvida.

-Presta bem atenção: eu não quero saber de você me ligando de novo. Nem lembrava da sua existência. Pra mim você já tinha falecido. É... O Falecido! - Era como ela se referia a ele, principalmente quando contava o porquê da separação para alguma amiga desinformada. - Não passa de um fantasma que resolveu me assombrar de novo.

-Ô Carmem, não faz isso comigo. Só Deus sabe o osso que eu ando roendo, amargurando de saudade. Fala que você não se lembra das noites que ficávamos contando estrelas, fingindo que a nossa cama era um barco a velejar pelos céus. E o 7 de setembro em cima da bandeira, hein?

Do outro lado da linha, Carmem ia amolecendo.

-Eu nunca ouvi falar de um casal que reatasse, Eustáquio!

-E a Lídia mais o Onofre, meu amor? Os dois se separaram, ficaram três anos em pé de guerra, e estão juntos de novo mais felizes do que antes. Ah vai, Rapadurinha...

O "Rapadurinha" foi o golpe fatal. Bem no alvo. Ela não suportou a pressão e derreteu-se.

-Tá bom, meu Pão de Mel. Vamos fazer um teste. Um período de experiência. Nada de definitivo, porém vou estipular condições...

Eustáquio nem esperou ela terminar, largou o telefone e correu para encontrar sua rapadurinha. Quinze minutos depois, já tocava a campainha.

-Então, minha Rapadurinha formosa, fala.

-Vai ser assim: vamos continuar com dois apartamentos. Você vem aqui, eu vou lá; não importa onde, mas como. Podemos dormir juntos, viver não. Pelo menos por enquanto. Cada um na sua: paz e amor. E pras minhas amigas, pra mamãe, você continua sendo "O Falecido". É isso! Você será um amante-fantasma e eu a mulher atormentada. - riu da sua divagação.

Eustáquio concordara no ato. Realmente ela era o doce que dava sabor à vida dele. Não queria discutir, só aproveitar. Para Carmem também fora uma maravilha. Voltara a experimentar a felicidade. O único problema para ela fora relembrar que defunto também roncava. E muito!!

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