FANTASMAS - OPUS 6
Samuel Silva

Olhei a casa mais uma vez, a penúltima, como se diz, contando que a reencontraria em um futuro, próximo ou remoto, nesta vida ou além. Sim, certamente, quando me tornasse apenas alma, seria do tipo apenas, por tanto que errei - e ainda errarei, minha cota ainda não se completou - nesta vida insossa que em que Deus e meus pais, em conluio de poucos auspícios, me meteram.

Casa construída de acordo com nossos desejos, nossa imaginação limitada pelo orçamento sempre baixo, com muito esforço e suor, eu ajudando os pedreiros, pintores...Um sufoco que fazia minha mulher dizer, com ar sábio, que "o difícil vale mais", ao que eu respondia mudamente que se fosse assim puta não ganharia o que ganhava.

Olho o quintal da parte de trás, onde fica a piscina, uma banheira hipertrofiada, construída - sim construída, no tempo em que se usava azulejo azul claro e não fibra ou outros plásticos - quando ela ficou grávida do Segundinho, com pouca profundidade: na parte rasa, sentava-se com a água na cintura, o que é próprio para o banho de bebês; a parte funda a água chegava à altura da cintura de um baiano-padrão em pé. Não é preconceito, é unidade de medida (sou paulistano).

A mangueira próxima, que dava generosa sombra nos dias de sol forte e me obrigava a limpezas frequentes da piscina nos dias de outono ou apenas de vento forte.

Vem-me um escuro na vista, prenúncio de um incontrolado retorno de imagens. O dia em que o Tercerinho, o caçula e geneticamente predestinado, como todo caçula, a ser o mais levado, o mais arteiro, o mais perigoso temerário de qualquer família, caiu da árvore de carlotinhas saborosas, como fosse não uma mangueira, mas uma jaqueira mutante, frutas molengas, com quatro espinhos carnudos. Eu estava passando a rede na superfície da piscina e ouvi aquele "ploft" abafado, voltei apenas o rosto para trás e vi o estatelado no chão de bruços, parecido com aquele desenho do Da Vinci de um cara dentro de um bambolê (bambolé?). O nosso Último era meio gordinho, para ser gentil como somos os pais com nossas crias, criado sob mimos de geléias de mocotó Colombo à hora que quisesse (cansei de ter que refazer estoques em meio-de-semana). E farinha láctea, com leite, ou pura, ou no iogurte, de todo jeito, enfim...Um dia me perguntou se podia botar farinha na comida e quase morri apoplético discutindo que farinha para comida era de rosca (fim-de-mês) ou de mandioca, nunca láctea. Mamou no peito até os dois anos. Tentamos introduzir a mamadeira, mas o malandro não entendia o conceito de substituição, só o de adição, e ficou com os peitos e com a mamadeira.

Voltei a eu-agora, olhei a casinha do cachorro, na verdade uma espécie de conjunto habitacional de baixa renda para caninos, quase um pombal, pois onde passa um boi, passa a boiada, quem onde come um come dois, e quem cuida de um pastor alemão, aceita collie, cocker spaniel, pequinês, vira-lata e até um yorkshire toy, tão pequeno que quase se afogou no pote de água da lassie.

No canto oposto do terreno, ainda nos fundos, a pequena construção que começou garagem, virou quarto de entulhos, bagunças e afins e encontrou seu ápice como matadouro sexual do guri do meio, um sexomaníaco na adolescência, o garanhão do bairro, orgulho viril do paipai e que faz pouco mudou-se para o arredores de Porto Seguro, onde se chama Sharon e se amasiou com um holandês estroina que o(a?) espanca todas as vezes em que ele(a?) diz que Zico foi melhor jogador do que o Cruif , que na verdade era um refrigerante de laranja , daí o apelido da seleção lá deles. Eu não sei onde errei: ele(a?) diz isso para o gringo quase todos os dias!

Sobre a garagem construí, com blocos de concreto, eu mesmo, um quartinho que minha esposa diz ser meu "quarto de meditação". Quando estava lá, ninguém podia me chamar ou causar qualquer interrupção.

Entrei na casa, vazia de móveis, quadros que eram reproduções em papel grosso de obras famosas, mas com belas molduras, sempre de expressionistas, nada destas coisas malucas moderninhas. Nada daqueles portinaris filarióticos ou aquelas tintas aleatórias.

O sinteco gasto, riscado, faltando aqui e ali uns pedaços de taco, as paredes coloridas de palha pelo tempo. Tantas lembranças, boas e más...

Fiquei deprimido, sai com a respiração parada, sem ar, e instintivamente fui para o "quarto de meditação". Espalhada pelo quarto estava, jogada no chão, toda desarrumada, amassada e suja, minha coleção de mulher pelada (Status, Ele&Ela, etc..., mas só as clássicas: Rose de Primo, Luiza Brunet, Milla Christie, a edição especial com Romy Schneider, Úrsula Andrews, Jane Birkin e outras atrizes internacionais...).

Lá estava ele, sentado com as costas apoiadas na parede, fumando um cigarro sem filtro. 

O susto foi tão grande que deixei cair as chaves e tive que me agachar para não perder os sentidos completamente. Era simplesmente horrendo!

Tinha uma cabeleira cor de ouro velho , desgrenhada e que crescia para cima e não para baixo. Os olhos pretos eram afastados demais um do outro e as sobrancelhas hirsutas se uniam em uma só e se esticavam quase até unirem-se com os cabelos. A testa era alta e protuberante e no meio havia um calombo alto. As orelhas enormes e de abano rompiam a cabeleira e pareciam me acenar. A boca era apenas uma linha, sem lábios; os dentes de cores irregulares, do branco até o ocre, com áreas pretas, manchas de fumo ou cárie; as gengivas, rosáceas e inchadas. A cabeça, embora não fosse pequena, parecia desproporcional ao corpo.

Ele falou e a boca me lembrou um quadro que vi numa revista de um careca gritando em deformações, toda redonda, triangular ou apenas o risco fino, dependendo do fonema.

- Oi, velhinho. Quer um cigarrinho? É Galoise, legítimo!

Paralisado de medo, não consegui articular som ou gesto.

- Não? Tudo bem, você não conseguiria fumá-lo, mesmo. Eu sou...

Nem o deixei terminar a frase e saí correndo: a casa estava vendida, não conhecia aquela peça estranha, ia me mandar e esquecer, mas a porta não abriu, estava trancada. Peguei as chaves no chão o mais rápido que pude e me irritei comigo porque minhas mãos tremiam tanto que não conseguia colocar a chave no buraco da fechadura, estava como uma dessas personagens de filme de terror B dos anos 50, todo atolado.

O sujeito gargalhou às minhas costas e quando digo nas minhas costas significa exatamente nas minhas costas! Senti a vibração de sua voz e um hálito fétido me congestionou o nariz imediatamente!

- Calma, cidadão! Não adianta, ela está trancada ectoplasmaticamente, pura arte minha!

Girei em torno dele como um romário na área. O medo pode ser tão poderoso a ponto de nos dar habilidades sobrenaturais, a ponto de em um nanosegundo eu estar do outro lado do quarto, procurando algo que usar como arma. Outra gargalhada me seguiu. Desisti de fugir e parti para cima dele, porém se eu fui rápido quando fugi, ele foi mais ainda ao desviar de mim e caí estatelado no piso, com o mesmo "plóft" do Terceirinho que contei. Tentei me levantar mas um peso enorme caiu sobre meus ombros e me manteve preso ao chão: o cara havia "montado" nas minhas costas, as pernas passando pelo meu ombro e axilas como um torniquete e prendendo-se sob a bunda do meu atacante. Ele era bem flexível.

- Como eu dizia, sou Serapião Medeiros de Alencar Cardoso de Lima, mas pode me chamar de Sebastião Medeiros de Alencar Lima, nunca gostei de ser Cardoso, sabe como é, idiossincrasia minha.

- O que você quer? - consegui perguntar, tentando parecer seguro e forte, mas me ouvindo fraco e fanho, a voz meio anasalada pelo cheiro pútrido que ele exalava.

- Ora, ora...Você! Eu quero você! - respondeu em nova gargalhada.

Temi um destino pior que a morte, como diziam as mocinhas muito antigamente. Eu ia ser estuprado! Eu, logo eu! Não te conto porque não podia ser eu, mas basta saber que respondi a dois processos por discriminação sexual quando eu trabalhava no governo e fui acusado de homófobo porque disse que viadagem e sapatagem eram doenças e falta de uns bons corretivos. Eu, logo eu!

- Acha que quero sodomizá-lo? O que anda lendo? Só pensa nisso? Ou é uma idiota pretensão? Tua bunda não merece tanto e não sou personagem rodrigueana!! Eu gosto de você, tenho de observado há muito tempo, mas não é nesse sentido! 

Não tive coragem de perguntar nada e me ocupava em tentar escapar daquele estranho abraço de pernas e do fedor nauseante.

- Eu te escolhi para ser meu amigo, meu irmão, camarada! Meu parceiro, sócio, entende? Unha-e-carne, se me permite a expressão um pouco imprópria pela minha condição! Mas antes de continuar, precisamos conversar, nada de muito demorado, porque embora eu não precise de dinheiro, o tempo é de valia.

- Sou, caro amigo, um fantasma! Com muita honra, muito brilho e competência! Nem poderia ser de outro jeito, estou nisso há muitos anos e o que não se aprende por inteligência, aprende-se como Pavlov ensinou!

Meus esforços de libertação me cansaram e parecia que quanto mais eu forçava mais apertado ficava o laço em que me metera. Deixei de resistir, momentaneamente, buscando recuperar-me para novas tentativas quando pudesse pegá-lo de surpresa. Ele era louco e loucos, dizem, possuem uma força anormal.

- Não um fantasma qualquer, ordinário, que você não mereceria nada menos do que alguém como eu: um coletor! O nome me descreve e ao meu mister: coleto almas que serão novos fantasmas. Sou um criador, como Deus, artistas...Preste atenção, porque isso é importante e será tudo o que direi por hora, o futuro dirá mais: fantasmas são criaturas especiais, realmente divinas, meu caro, e realmente nós somos à imagem e semelhança de deus, embora deva reconhecer que alguns de nós são mais parecidos com ele, em termos estéticos, do que outros. Sou um semelhante distante, é visível!

O facínora riu, como se tivesse dito uma piada.

- Somos de diversos tipos, além de feitios, e existem mil variedades, seja pelas habilidades, seja pelos gostos, seja por qualquer critério razoável. Existem aqueles que são chamados poltergeist, que assustam produzindo fenômenos basicamente físicos, aquelas coisas de objetos se movendo, fogo de geração espontânea e por aí vai. Existem aqueles que preferem uivar, gemer, arrastar correntes e falar com voz cavernosa, etc. Temos também os saudosos da carne e seus prazeres e dominam os vivos, como parasitas dominadores do hospedeiro. Esqueça aquele papo de demônio possuindo o crente, isso é balela! O demo anda muito ocupado com questões estratégicas para se envolver com coisas tão... tão... operacionais.

Virei o rosto de lado, pois meu queixo doía de tanto empurrar o chão e pude encarar o rosto monstruoso. Fechei os olhos para poupar-me.

- Isso, acomode-se o mais confortável que for possível e me desculpe, mas quero um pouco de tranquilidade durante esta explicação. É muito didática, ainda vai me agradecer a paciência e a dedicação com que ajo contigo. É que simpatizei com você, é afeição honesta e pura.

- Como dizia, estes e mais os transformistas são os mais populares entre os vivos, têm mais glamour, sei lá, nunca entendi isso, claro, enquanto fantasma...Adoro falar que nem sociólogo: enquanto isso, a nível daquilo...Está errado eu sei, mas é a concessão que me faço, ser sempre correto às vezes cansa. Não gosto dos transformistas, acho-os muito espectaculosos e não agregam valor à nossa imagem, é aquela coisa de se transformarem em um ente querido da vítima e de repente assumirem a forma de um monstrengo de lenda, tsc, tsc, muito primário, entende? Mas, a hora é chegada, estou até atrasado e não quero mantê-lo assim, tão maltratado. Será rápido, um movimento de seu pescoço e... voilá!

* * *

...eu estava, então, andando por aí, quando me deparei com um cartaz desses colados em poste falando da senhora e resolvi vir aqui falar com a senhora, para ver se me ajudava; afinal, a senhora é vidente... Mãe Dinah? Mãe Dinah? por favor, não grite, não fuja!! Sim, eu sei o que sou, não precisa chamar a vizinhança toda para me ver... E não me chame de assombração danada!

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