O MUNDO PARALELO
Reinaldo de Morais Filho

Só quem anda pode ver fantasmas escondidos nos cantos negros das ruas. Só quem anda pela famosa Rua Toneleros terá exata noção do que estou tratando. E somente aquelas pessoas com sensibilidade suficiente para sentir o insensível poderão acreditar. 

O que importa é a verdade, e esta se materializa nas palavras que escrevo, que tenho medo de falar. Como se os espíritos não pudessem ler, como se apenas fossem capazes de ouvir as denúncias que nossas bocas pronunciam. 

Escrevo - mas evito pensar fixamente, nego-me a comentar, ainda que embriagado: naquela rua, que logo acima citei, um mundo oculto sobrevive por debaixo da realidade, do plano material que o mais rústico aparelho ocular pode sentir. 

Uma longa travessa estreita, encurralada por altos prédios comerciais; os ladrilhos sujos, desgastados e tortos que se acotovelam nas calçadas; as árvores de fartas folhas verdes, de tronco delgado, de feições mórbidas. Uma longa travessa de parca vida, de muitos porteiros igualmente cabisbaixos. 

O piche que preenche o asfalto desmancha-se nos cantos, buracos se abrem; os carros, que a deixam constantemente engarrafada, machucam os calos do solo, lavam com uma fumaça pesada as raízes das árvores, maltratam os ouvidos, afugentam os pássaros. 

As janelas fechadas, inúmeros cômodos voltados para dentro, nenhuma cabeça esticada para além do parapeito. Os mortais que ali vagueiam correm de cabeça baixa, ou prendem-se nos veículos, assustados com a possibilidade iminente de uma assalto, atrasados, de sobrancelhas curvadas em forma de v invertido. 

E o mundo paralelo à espreita, atento a cada passo, a cada detalhe que nós, ignaros sobreviventes, temos a oferecer. Sinto os olhos curiosos tocando a minha pele, tentando invadir a minha mente, acompanhando os meus passos disfarçados em sombra. 

Um vento que sopra gelado em uma noite quente, as folhas amareladas que caem sobre meu ombro, o galho da árvore que balança em meu encalço. Escuto um alarido, conversas em ritmo de choro, uma lamentação constante de vozes que não podem estar vivas; se morto, também iria encarar o mundo de forma chorosa. Iria procurar uma rua sombria para observar um sopro mínimo de vida sem ser incomodado. 

Se vivo, iria aproveitar o toque, as sensações e o poder da minha vontade. Nem sei se estou vivo, nem sei se estou morto. Sinto o corpo e o peso dos meus desejos, e a emoção, e o toque; entretanto, ando a observar a vida dos outros como se não tivesse a minha.

Sinto-me estranho, a cada dia as vozes aumentam; outro dia cheguei a ouvir um gemido em meu quarto, uma risada seca perdida na sala, um suspiro no meio do vazio. Talvez tenham notado minha percepção, e talvez isto seja uma novidade, um grande acontecimento.

Por isto não falo, evito pensar, escrevo com medo de ser pego em confissão. Assovio uma melodia qualquer quando atravesso aquela trilha, um caminho necessário para que eu possa chegar no trabalho; assovio cada vez mais alto.

Poderia ir por uma outra rua, mas, por mais esquisito que isto possa soar, tenho pressentimentos ruins que me obrigam a seguir o caminho tradicional; como se eu fosse me perder caso mudasse o rumo.

Enquanto meu pulmão puder soprar um respingo de coragem em meus passos, irei seguir o mesmo destino. Cada vez mais temeroso, pode-se dizer, pois os ventos que antes giravam suaves em meu torno, agora agitam-se ferozes, empurram com violência, gélidos...

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