O FANTASMAS E A BATATA FRITA
Raquel Macruz

- O papai morreu? E agora? A gente vai ficar pobre?

Minha mãe me abraçou... Triste sorriso cortando-lhe a face empalidecida pelas emoções, surpreendida pelo efeito traiçoeiro dos contos de fadas...

Foi uma época povoada de sonhos reais, revelações assustadoras e incompreensíveis aos meus 5 anos. E como me abrigasse em castelos solitários onde a língua falada era a das impressões e sensações, e não encontrasse com quem dela pudesse compartilhar, todos os habitantes daquele mundo de Alice, as sensações que dele vinham, as imagens... acabavam penetrando em mim de modo profundo e se misturando à minha essência tão ilimitada e infantil. Longas noites escuras me convidavam a passeios por locais fascinantes... Mergulhos profundos e visitas inesperadas, figuras estranhamente familiares, encontros carregados de emoção... Atravessava portas proibidas por lei nenhuma, penetrava mundos jamais descritos, abria os olhos e via com outros sentidos que não imaginava existirem... Um desejo intenso de poder ter o calor de mãos quentes ali comigo a me proteger dizendo que tudo estava bem, que as coisas só tinham formas diferentes, ao mesmo tempo, que tinha a certeza reconhecer aqueles como passos a serem percorridos... Um medo enorme invadia meu o corpo. Impulso de mergulhar mais fundo e medo intenso e devastador de não conseguir voltar, de não reconhecer o caminho de volta a casa... O pânico... a respiração alterada, o coração batendo forte... a explosão em choro acordada... O negativo de meus dias às voltas com travessuras e algazarras de crianças...

Ficamos temporariamente na casa de uma tia em um bairro distante... um lugar maravilhoso repleto de meninos que brincavam e se envolviam em memoráveis guerras e disputas... Alguns meses depois, minha mãe encontrou um apartamento a poucos quarteirões de lá... 

Todos os dias, após as aulas, a tropa esfuziante de crianças se reunia para jogos e brincadeiras num tempo em que meninos e meninas tinham o único e simples objetivo de viver gostoso! Já no finalzinho da tarde cruzava o pátio, minha mãe, correndo sua pressa sem fim... E como que num passe de mágica, segundo um código secreto, daqueles que somente as mulheres modernas são obrigadas a decifrar, poucos minutos após sua chegada era anunciado o jantar... Despedia-me dos amigos e saltitava rumo à porta no final do corredor escuro... A vizinhança calava-se aos meus ouvidos, a fome fazendo-se soar... Hora do jantar!!! Salsicha? Ovo estralado? Feijoada, hoje é que não... Bife alinamesa... De repente o descompasso... Cheiro inconfundível invadindo o pequeno corredor de entrada... Queria voltar mas não tinha para onde... Já não ouvia mais o ribombar de meu estômago... Os barulhos da vizinhança tornavam-se audíveis novamente... Os talheres ressoando no apartamento da enorme D. Julia, Dona Neusa cantarolando o Rei Roberto, seu pai iniciando um discurso... Abria a porta sem ânimo e me arrastava para o banheiro... Estourava, desanimada, bolhas de sabão nas mãos, assistindo o caldo escuro escorrer pelos braços. Atravessava o corredor olhando as pipoquinhas da parede, na esperança de nelas encontrar a solidariedade calada de desenhos ocultos... Entrava na cozinha, enfim, e olhava desacreditada para a travessa fumegante sentada ao centro da mesa exibindo enormes bifes de FÍGADO!... Deixava-me cair na cadeira em frente à mesa na estreita cozinha, a música de abertura do jornal na TV e depois o horripilante e imperdível Nacional Kid, com monstros assustadores que não ajudavam a fazer descer o bife indigesto. A boca aguava um enjôo perpétuo travando a garganta num bolo sufocante que, misturado ao cheiro forte, não me deixavam respirar. Era necessário ter muita paciência e esperar um momento de falta de atenção de minha mãe... O pai de D. Neusa gritava na cozinha atrás do muro vizinho... Enquanto aguardava o momento preciso, ocupava-me separando as batatinhas do arroz e do bife mal cheiroso... Primeiro comia o arroz que nem me apetecia nem tampouco me enojava. Aviões partiam de meu prato... o garfo era o homem de cabelos arrepiados... a colher a mulher... bailando num chão estrelado... National Kid!!!!!!!! ... os grãos de arroz formavam desenhos interessantes... Neusa!!!!! Berrava o pai bêbado do outro lado... "Ai de mim! Ai de mim como sou infeliz!!!!" Respondia num brado, minha mãe Hamleta, fazendo troça do velho chato que azedava a vida da vizinhança. Minha irmã e eu nos olhávamos entre risos... Como é louca essa nossa mãe... Barulho de louças se quebrando na casa ao lado. O velho despencando no chão... Minha mãe levantando-se para escovar os dentes e sair ligeiro para dar as aulas da noite. De manhã, à tarde e à noite... Aulas sempre... Provas... Mil... Passava intermináveis horas de nossos fins de semana, corrigindo pilhas e mais pilhas de provas de alunos das várias escolas onde lecionava. Era, enfim, chegada a hora... No curto intervalo em que desaparecia pela porta do banheiro e o beijo de despedida - o barulho da torneira aberta garantia que ela não apareceria de supetão -, tínhamos que fazer desaparecer de nossos pratos tudo aquilo de indesejado que lá houvesse. A mais veloz e hábil conseguia enrolar os restos de comida no guardanapo e encaixar o bololô de comida na bifurcação do pé da mesa de fórmica. Quem sobrasse, tinha que fazer uso do cestinho da lata de azeite... esconder a comida sob o prato, no bolso.... Às vezes um pedaço de bife voador atravessava o muro da casa da Dona Neusa para ser devorado pelo pequines que eu acho que nem existia... A figura de minha mãe despontando pela porta. Missão cumprida. O jantar chegava ao fim... As batatinhas eram como um troféu à proeza bem sucedida. Um verdadeiro banquete aos noivos de meu jantar... O bêbado já tinha caído no sono no sofá de curvim marrom para o alívio de Dona Neusa e minha mãe suspirava um adeus e se empurrava para fora do apartamento na última etapa de sua longa jornada de trabalho.

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