O
CARRO
Raquel Macruz
Já era tardinha, quando finalmente retornamos ao nosso pequeno apartamento no Jardim São Paulo. Entramos no prédio de pastilhas empalidecidas pelo tempo, atravessamos cansadas o pátio de entrada, a porta de ferro exibindo uma de suas janelas quebradas. Dirigimo-nos à escada lisa, amarelada, encardida pelo uso e desencardida pelo cloro. Olhei a porta e o vidro... Lembranças do medo terrível de me encontrar com a Nini toda vez que descia para brincar. Bochechuda, loira de ralos cabelos lisos, ela avançava sobre as crianças ameaçadora, e se não conseguisse o que queria, partia para cima da meninada, gritando esganiçada pela mãe, choramingando fingida, dando empurrões e distribuindo chutes com sua botina ortopédica... Toda vez que me olhava, eu tinha certeza de que podia ver estampado em meus olhos, o enorme medo que dela eu tinha... Medo da força bruta representada por aquela massa amarelenta e pesada com franjinha esvoaçante, que sabia poder me atropelar feito um trator quando bem entendesse. Não deixe que ela bata de novo em você, filha... Ao ver a porta de ferro sumindo atrás da curva da escada eu podia ver meu primeiro e último embate com a loirinha gordota e mimada... Dei-lhe um empurrão e fugi. Corria tão rápido e tão apavorada que mal sentia os pés tocando os degraus. O coração estourando meus ouvidos e apertando minha garganta. Não via nada à minha frente, só me concentrava nos ruídos que vinham por trás de mim... O medo de que pudesse me alcançar, suas mãos pesadas aproximando-se de minhas costas, o que poderia acontecer então... Quando de repente, um grito estridente ecoou lá embaixo - a raiva de ter sido pega de surpresa por uma tripinha ruiva e sardenta - e finalmente, o barulho de vidro se quebrando, quando enfurecida ela desfechou um golpe de punho cerrado e quebrou o vidro da porta de ferro. Tranquei a porta de casa atrás de mim ofegante, temerosa, orgulhosa, tambores ecoando dentro do peito... Minha casa... meu abrigo... Minha mãe... carregada de nossas bagagens de férias, minha irmã e eu, queimadas de sol e alegres, corremos abraçar nosso pai. A camisa aberta revelava seu peito avermelhado pelo calor sufocante da cidade, coberto por precoces pêlos brancos em seus 33 anos. Rosto vermelho, careca lustrosa, braços largos a nos receber e dentes amarelados pela nicotina se abrindo em uma deliciosa risada.
Na "poltrona do papai", no canto da sala, aboletamo-nos em seu colo ansiosas por contar-lhe as novidades... As aventuras com nossos primos, o mar enorme e lindo, as fugas das ondas (não me aproximava de ondas mais altas que 5 cm), os sustos, a praia, os peixes, castelos de um mundo de fantasia que me abrigava e aconchegava... Eu era a engenheira que construía os castelos, mas era também a princesa que lá se escondia, protegida pelos príncipes caranguejos, tão valentes em suas armaduras...
A noite caiu iluminada pelas estrelas que ainda pintavam o céu de São Paulo. Moleza do corpo exaurido, anestesia de sono amortecendo os membros cansados. As luzes azuladas acendendo a cidade... Duas garotinhas sardentas e cansadas entregavam-se aos braços de um sono bom... Acordei nos braços de algum adulto que me carregava para um carro daqueles antigos, pretos, com pára-lamas grandes e arredondados...
Cochichos, sussurros... O balanço do carro me acalentava e fazia suspirar o sono bom... o balanço do carro que me levava para longe... bem longe do apartamento de pastilhas gastas e chão clareado pelo cloro, longe da porta de vidro e do monstro de minha infância chamado Nini... sem saber que não mais... aquele abraço quente, aquela risada gostosa... Adeus singelo e amoroso ao papai...
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