CIDADÃOS VIRTUAIS
Maurício Cintrão
Agora é força de lei. Somos fantasmas. Os documentos de toda a população brasileira perderam a validade legal no mês de abril. Isso não é uma homenagem ao Dia da Mentira. Viramos fantasmas no universo legal.
Um projeto de autoria do Senador Pedro Simon, de 1997, sancionado pelo Presidente em abril daquele ano, determinou que nossos documentos caducariam cinco anos depois, porque, até então, já deveria estar valendo um novo documento, único e nacional. O tal carteirão nunca saiu da intenção pois nada foi feito para a sua viabilização. Mas esqueceram do efeito retardado da lei.
Em linhas gerais, o projeto é bem intencionado. Visa estabelecer identidade única e nacional para conter a criminalidade ou, pelo menos, permitir rastreamento dos cidadãos onde quer que estejam.
Cá entre nós, o carteirão daria uma ótima oportunidade para você se livrar daquela carteira de identidade cuja foto apresenta um paletó ridículo ou aquele coque com laquê. Daria também para atualizar a assinatura, que mudou muito depois de tanto tempo (algumas para pior, mas, o que fazer?).
Bom, mas a questão é que o carteirão não veio e todos viramos fantasmas do ponto de vista da papelada legal. Como sou um sujeito otimista, não deixo de ver um lado positivo nisso tudo. É um ótimo momento para dar aquela alisadinha básica de elevador na(o) colega cobiçada(o). Porque, diante da reclamação, é só dizer: "pera, eu não existo, sou um(a) fantasma".
Faltar no serviço também não dá direito a desconto. Se você é funcionário fantasma, ora, então não falta. É certo que sempre tem o lado ruim. O patrão pode perceber que você não faz falta. Ou, pior, já que você é funcionário fantasma, pode não pagar seu salário. Fantasma vai reclamar para quem?
A porção fantasmagórica e fora da lei não deixa de ser uma forma de valorizar o mundo eletrônico. Porque, a partir dessa lei, os brasileiros ingressaram em peso no universo virtual. E nem precisa de computador. Todos somos virtuais. Será que trocaremos os nomes por logins? Duro vai ser lembrar da senha em batida da polícia.
Virtualidade que pode ser uma grande vantagem nestes tempos de campanha eleitoral e de voto eletrônico. Sem título de eleitor, o eleitorado fantasma poderá votar quanto quiser e os candidatos fantasma não poderão ser excluídos do pleito. Isso sem contar que, enfim, os ghost writers (escritores fantasma) serão reconhecidos.
Com um governo fantasma, surgirão leis fantasma e falcatruas fantasma. Duro vai ser justificar para o FMI o não pagamento da dívida, posto que um ministro da fazenda fantasma não assume o passivo fantasma de um país que não existe legalmente.
Das duas uma: ou os gringos dão uma carteirada e assumem o País de vez (afinal, país-fantasma não tem dono), ou dão um grito de lá e resolvem tudo por aqui. Pois ninguém melhor do que eles para entender como ressuscitar os mortos.
PS: a Lei do carteirão foi sancionada em 7 de abril de 1997 sob o nº 9454.
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