RISCO DE VIDA
Luís Valise

 
 
Era loucura, ela sabia. Mais que loucura: - uma puta cagada! Dessas de se arrepender pra sempre, chorar no escuro, chamar pela mãe sem ser ouvida. Por isso ela perguntou de novo se ele queria continuar com aquilo. Ele fez que sim com a cabeça, e ainda disse "Mas como tudo, sempre, tem seu preço". Ela falou "Tudo bem, eu assumo". Eles se moviam devagar pra não despertar suspeitas. O sentimento de culpa dava a impressão de que todos olhavam pra eles. "Desencana", ele cochichou, "Já passei por isso antes". Ela tremia, ia acabar dando bandeira, já tava até dando mijaneira. "Güenta, agora nem pensar". O nervoso aumentava a mijaneira. "Por que você não foi antes?", a voz dele saía entredentes, pelo canto da boca. Por trás do sorriso de velório ela também estava uma pilha "Pára de me encher o saco, o mijo é meu, sai na hora que eu quiser!". O corredor era longo, dava pra desistir. A autoridade estava distante, bastava disfarçar, dar meia-volta, e com cara de quem bateu na porta errada andar em direção à saída, e depois correr cada um prum lado pra confundir eventuais perseguidores. O medo era ainda pior que a mijaneira "É como ter um fantasma dentro do vestido".Ele deu uma olhada rápida conferindo a roupa dela e sossegou "Tá limpeza, não se nota nada". Andaram mais um pouco, ela viu o céu por uma janela, pensou em liberdade. Se desse errado, quanto tempo ela passaria até voltar à liberdade? Guarujá. "Por que estou fazendo isso? Pra que correr esse risco? Se alguma coisa sair errado quanto tempo eu vou ficar sem poder ir à praia?" Tá certo, ele tinha experiência, era macaco velho, mas ele era ele! Se desse errado e ele se fudesse pau no cu dele! O cara queria tudo que via, um puta ambicioso! E ela, idiota, dera ouvido aos planos do sabichão, "Se der certo vamos levar o resto da vida na flauta". E se desse errado ela é quem levaria a flauta vocês-sabem-aonde! Pronto! O homem já tinha olhado pra ela, com uma puta cara séria. Vai ver ele já percebera alguma coisa sob o vestido. "Cristo, que suplício! O quê que eu estou fazendo aqui? Acho que vou desistir, sair de fininho, se o sabichão quiser que saia também, se não que encare o risco sozinho!". Ele caminhava lentamente, com passos decididos "Cuidado, você tá dando bandeira. Sorria pra mim, quem sabe fingir passa por isso numa boa, tô te dizendo. Relaxa, pense que logo-logo estaremos na Europa, quer dizer, se você não estragar tudo antes. Segura a onda, segura a onda!". Os passos dela eram hesitantes "Europa, Europa, Europa o caralho!, eu quero é voltar pra minha casa!, como é que eu fui entrar nessa, se der errado você me paga, te persigo até a morte, eu perco a liberdade mas te persigo até a morte!". O volume debaixo do vestido parecia crescer. Na cabeça dela qualquer um podia ver, quanto mais o homem sério lá na frente, o olho treinado acostumado a desvendar mistérios muito mais intrincados. Ele iria perceber o volume, ela iria desmaiar, o sabichão faria cara de quem não tem nada a ver com o peixe e pronto!, tava armado o barraco! Depois o pai é quem teria que se virar com advogados e o escambau, se é que o pai ainda se interessaria por ela. Jogar o nome da família na lama desse jeito, onde já se viu? Ela vacilou "Acho melhor desistir. Vamos voltar. Eu quero voltar." Ele segurou seu braço com força "Não faz isso agora! Já estamos quase chegando, quando você notar já teremos passado por isso, e depois é só tomar o avião e comer aquela paella na Espanha. Você não disse que estava louca por uma paella na Espanha? Então, fica firme, pensa na paella, no vinho, no touro, pensa em qualquer coisa mas fica firme. Confie em mim, como eu confio em você." Quando ela viu já estavam cara a cara com o homem, e de perto a cara dele era mais séria ainda. Se ela tremeu, ela não lembra. Se ela suou, ela não lembra. Ela não se lembra de nada, só que o sabichão é quem falava pelos dois, respondendo às perguntas do homem sério. Se ela disse uma palavra foi muito. Acho que o homem não percebeu o volume debaixo da roupa. Durou menos do que ela esperava. Depois, um pouco mais tranqüila, caminhava na direção do avião. A mijaneira tinha passado. Seu coração inquieto ainda batia meio fora de compasso. O risco estava lá, qualquer descuido e babau!, acabou-se o que era doce. Se não fosse pela experiência dele, ela não teria agüentado. Sentou-se, apertou o cinto, lembrou da paella. Olhou pro sabichão ao seu lado. Ele soltava o nó da gravata. Ainda suava um pouco. Olhou pra ela e disse "Eu garanto. O pior já passou". Ela pousou a mão no volume dentro do vestido. A única coisa que lembrava foi quando o homem sério disse "...E os declaro marido e mulher."
 
 

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