FRAGMENTOS IV
Flora Rodrigues

Finalmente as minhas lágrimas secaram. A dor e a culpa deixaram de me perseguir. Foi bom sentir-te a meu lado todo este tempo. Mesmo sabendo que partiste, sei que nunca me abandonarás, mesmo que tenhas partido para sempre. Ninguém me pode tirar os momentos de felicidade que vivi ao teu lado. Foste o sol e a lua da minha vida!

Quando partiste fiquei sem luz na minha vida. Tive que caminhar a tactear, até que aos poucos fui encontrando de novo o caminho, fui-me reencontrando, reunindo os meus fragmentos em que a dor me transformou até me reconstruir. Mas só foi possível, porque te sentia a limpares-me as lágrimas e afagares-me o rosto, mesmo quando eu não te podia ver, quando já não te podia abraçar. Sei que estavas junto a mim, como sempre estiveste.

A guerra ensinou-me a dar valor à vida e quantas vezes não arriscámos as nossas vidas para salvar outras. Dizias-me que era perigoso o que fazias, mas o que tu fazias era digno de toda admiração. Admirei-te e segui-te contra a tua vontade. Mas cada vez que conseguimos ajudar famílias a salvarem-se de morte certa, a nossa felicidade era suprema. Talvez fosse essa a tua missão suprema neste mundo. Sim, porque foi tudo tão irónico. Festejámos o fim da guerra, junto daqueles que salvámos. Estávamos felizes. Tínhamos conseguido cumprir a missão de salvar todas aquelas vidas, incluindo as nossas. Fomos uma boa equipa. 

Depois, deixámos toda aquela gente feliz e decidimos partir sem rumo, para celebrarmos o nosso amor. Vivemos anos felizes, viajando pelo mundo, por uma Europa que renascia.

Sentias-te cansado e decidimos regressar a Lisboa. Pediste-me que tomasse o volante nas minhas mãos. Estavas cansado e eu, apesar de insegura aceitei. Queria ajudar-te, atenuar o teu cansaço. Durante o caminho repetiste vezes sem fim que eu era a coisa mais importante da tua vida. Que me amarias para todo o sempre. Lembro-me que sorria de felicidade. Mas estava um nevoeiro denso, muito cerrado. Não quis parar. Estávamos quase a chegar, quando senti o carro a deslizar. Tentei segurá-lo, -ia devagar-, -ia conseguir-, mas depois disso, o embate violento. A escuridão. O vazio.

O som da sirene. Rostos desconhecidos vestidos de branco. O trepidar da ambulância. A sensação de desespero quando me comunicaram: "Lamento não foi possível fazer nada!".

Depois, depois a dor... a dor de te ver submergir para as entranhas da terra que impiedosa te engolia e roubava de mim, sem que eu nada pudesse fazer, sem que eu nada pudesse fazer...! Um dia negro, afogado em recordações de pessoas enlutadas, rostos consternados cobertos de negro, e palavras de consolo impotentes para combater a dor. As lágrimas lavavam-me a alma.

Hoje, tenho a certeza. "Tinhas cumprido a tua missão"

Aos poucos fui reaprendendo e viver e como foi bom sentir que o nosso amor ultrapassara a barreira da vida e da morte. 

Os dias passaram-se, os meses passaram-se e aos dias e aos meses, foram-se sucedendo os anos. Aprendi muito. Reaprender a viver com a morte é uma grande lição de vida.

Sei agora que tu partiste, porque sentes que já me perdoei. Sei que partiste porque já não sinto a fragrância de café a inundar a cozinha da tua presença, sei que partiste porque as borboletas azuis que povoavam o jardim não voltaram a bater as suas asas. Sei que partistes porque as tulipas amarelas que plantei, nasceram brancas. Percebi que te estavas a despedir. Percebi que me sentias feliz!

Sim estou feliz, consegui abrir o meu coração de novo para a vida. Libertei-me das minhas culpas, perdoei-me os meus erros. Não sou mais prisioneira dos fantasmas do passado. Sim, porque esses são os verdadeiros fantasmas que não nos deixam seguir o nosso caminho em paz, os fantasmas da culpa. E só o consegui porque mesmo atravessando dois mundos, conseguiste fazer-me sentir o teu perdão, o teu amor infinito.

Está na hora de dizer "Adeus meu grande, grande amor. Voltaremos a encontrar-nos". Agora está na hora de continuar a vida que deixei incompleta, de recomeçar. Só que tenho que seguir sem ti, tenho que nos libertar.

Nunca deixarei de te amar, mas tenho de viver, de recomeçar a sorrir.

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