TEMPO
DE FANTASMAS
Daniela Belmiro
Eles eram como bolhas de sabão sopradas pelo canudo da febre na tarde morna. Suaves, parecendo muito translúcidos e à vontade passeando nas dobras da colcha de retalhos sobre as minhas pernas finas e tristes de menino doente.
Um cientista sisudo saído do livro de capa dura que meu avô me mostrara, umas crianças rosadas que me chamavam cantando numa língua que eu nunca entendia, às vezes uns negrinhos de olhos estalados.
Eu não ligava muito para aquilo tudo, não. Até gostava da companhia. Ria das molecagens de uns, tentava consolar o choro de outros, conversava bastante com uma menina muito lívida que parecia ter a minha idade. Assim as tardes iam escorrendo lentas sem escola e sem bicicleta naquela doença que não tinha mais fim. E eu me distraía tanto que quase nem reparava mais no entra-e-sai dos empregados com infinitas bandejas, sopas, remédios, nas olheiras da minha avó tomando conta do rosto inteiro, nos cochichos de todos pelos cantos do quarto.
Só que um dia começaram a aparecer umas gentes de outra natureza, mais esquisitas. Umas donas descalças de roupa branca com um galhinho na mão, um padre daqueles de batina até o pé e crucifixo pesado no peito, umas conversas, uns cheiros estranhos naquelas fumacinhas que eles traziam, e um monte de perguntas.
Nem sei mais quanto tempo eles zanzaram pelo quarto olhando pra tudo como se fosse coisa de outro mundo, cobrindo os espelhos com uns panos escuros e falando, falando, falando. Falavam tanto que por ali não cabia mais nada, nem os gestos largos do cientista, nem as cantigas estranhas e bonitas e nem a menina, coitada, que não podia mais ficar em paz perto da cabeceira da cama. Até que um dia quem não coube mais no quarto fui eu.
Numa tarde que me pareceu menos morna e quando as coisas em volta, a cama, a colcha e o chão pareceram mais firmes, eu senti vontade de levantar.
Duas semanas depois foi meu aniversário de 7 anos e eu ganhei uma bola novinha, de couro branco e preto.
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