SENTIDO OPOSTO
Beto Muniz

 
 
Foi difícil acreditar em meus olhos, mas era verdade. A imagem que minha retina prendia não era ilusão ou miragem, era real. As duas pessoas que protagonizaram a lembrança mais dolorida do meu passado eram os condutores da carroça lotada de papelão que atravancava o trânsito na pista contrária.

O homem portava a aparência e a fadiga de um velho. Suas roupas estavam esfarrapadas, seus pés calçavam sandálias costuradas com arames e seu rosto ostentava uma barba de anos, suja, encardida, emaranhada como os cabelos da mulher que perscrutava as sarjetas em busca de mais papéis, plásticos e latas. Como se coubesse mais algum objeto, por menor que fosse, na montanha acumulada sobre o carrocim. O peso da carroça estava todo arriado sobre a corda de tecido trançado que surgia pelo ombro masculino, cruzava o peito e descia pela lateral da cintura. As pontas estavam amarradas nos travessões presos em cada lado da velha geladeira agora dotada de rodas. Um pneu estava murcho fazendo com que o veículo bizarro pendesse para o lado, derrubando tralhas enquanto se movimentava pelo asfalto irregular. O homem não percebia seu lucro escoando e concentrava esforços na vitória contra a lombada seguinte. Cabia à mulher a extrema resignação de apanhar o objeto e acomodar de volta no cume de lixo reciclável. Eu a reconheci apesar do rosto sofrido, do colo murcho e das mãos imundas. Estava gasta, no espírito e no físico. Da beleza límpida que me inspirou promessas de amor pouco restava, e a visão daquela boca maltratada transformava em repugnância a nostalgia dos beijos que ofertei noutros dias. Tive certeza que era ela, mais pelo homem à sua frente conduzindo lixo. Era ela sim. Eu odiava o sujeito. Juntos compartilhamos os melhores anos da juventude. Meu ex-melhor amigo desde o momento em que se declarou apaixonado pela mesma mulher que eu. Ficaram juntos desdenhando minha dor. Ao saber que perdia dois entes queridos, amigo e namorada, jurei vingança. Eles juraram amor eterno na capela.

Incrédulo com a cena ofertada, retornei e, protegido pelo vidro escuro do carro, passei a acompanhar a cena dantesca. Os miseráveis que no passado haviam pisado meus sentimentos se ofereciam em banquete para minha vingança muda. Espreitei gozando cada gemido que ele parecia emitir no esforço de arrastar sua carga. Malditos! Maldisse a força que ele ainda tinha para puxar a carroça, maldisse toda beleza que ela ainda guardava nos olhos azuis que me fitaram por segundos. Ser olhado de frente por um espectro assusta... Não me reconheceu ou não enxergou através da película escura aplicada nos vidros. Pensei em descer do carro e rir de sua desgraça, mas dez anos é muito tempo para guardar rancor e, sinceramente, há muito eu esquecera da traição. As dores haviam ressuscitado ao reconhecer o casal, mas não doíam como antes. Minha dor não era a mesma, eu também não era o mesmo. Nem ela. Nem ele. Subitamente a vingança fria que eu digeria tornou-se amarga e uma fagulha dos sentimentos de amizade e amor que havia ofertado a ambos num passado, nem tão distante, ardeu em meu peito, me deixando miúdo. Envergonhado de minha pequenez senti o ódio fenecendo e então me compadeci do homem e da sombra que o acompanhava.

Minha lembrança mais dolorida seria outra desse momento em diante; meu primeiro amor acocorado ao lado do bueiro pescando restos vendáveis do lixo que a cidade produzia. Girei o volante em sentido oposto e mesmo com o coração frouxo, sem prazer algum em gozar a cena, ainda permiti que a palavra 'traidores!' escapasse por entre dentes enquanto abandonava meus dois fantasmas ao próprio azar.
 
 

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