PINGUIM
Raquel Macruz
Jussara e Mogli haviam chegado à ilha fazia quatro anos. Moraram no sopé do morro, incrustados nas rochas, em lugares modestos, outros exóticos, até que finalmente mudaram-se para uma aconchegante casa perto da praia onde encontraram um cachorrinho branco muito mal humorado que avançava e mordia meio mundo que passava pela rua. Mas como a casa não estava cercada e eles precisavam de um guardinha que não fugisse, aceitaram o velho ranzinza como mascote. Ele, porém, era terrível. Mordeu a Helena, irmãzinha de Jussara, coitada, que foi crente agradar o cachorro fofinho que dormia no sofá velho da varanda. Mordeu uma senhora que por lá passava com seu filhinho e por fim, foi atropelado por um carro ou caminhão e morreu sob os vivas silenciosos da vizinhança que passou a transitar com mais segurança pela rua.
Alguns dias depois, Jussara e Mogli voltaram da praia acompanhados de um vira-lata branco e preto, magrela e lindamente feioso a quem deram o nome de Pinguim. O cachorro que latia feito louco e pulava em todo mundo sem parar, era contudo, um companheiro fiel. Daquele tipo que segue seu dono por toda e qualquer parte, que o defende quando sente que alguém toma uma atitude mais hostil com seus donos, que vai até o mercado e nunca volta de lá sem seu mestre...
Num outro dia, enquanto Jussara esperava o ônibus para ir à faculdade, Pinguim postou-se ao seu lado. O ônibus chegou e Jussara entrou. Quando olhou para trás, Pinguim havia pulado para dentro do ônibus atrás dela. Ela colocou o cachorro para fora:
-Sai Pinguim!
Ele saltou do ônibus agilmente, mas foi o tempo d'ela virar-se e ele saltou para dentro de novo.
- Prá fora , Pinguim!- repetiu ela para o cachorrinho de pelo reluzente.
Jussara tentou uma vez mais, mas o cachorro insistiu em acompanhá-la.
- Sai Pinguim! - o motorista interveio.
Ela, então, teve uma idéia:
- Motorista, quando eu jogar o Pinguim pra fora do ônibus você fecha a porta rapidinho!
Os passageiros todos torciam. Uns pelo Pinguim, porque afinal de contas, fidelidade assim não pode ser menosprezada. Outros, contra ele, pois o relógio corria e o trânsito na Costeira, certamente, seria implacável com eles.
Jussara jogou o cão prá fora, o motorista fechou a porta e eles seguiram viagem.
Os passageiros riam. Todos se divertiram e continuaram se divertindo acompanhando o Pinguim correndo atrás do ônibus rápido e determinado. Havia momentos em que o perdiam de vista e dava até medo de que ele fosse apanhado por uma das rodas em sua empreitada. No ponto seguinte, o carro parou para os próximos passageiros e o obstinado animal pegou o ônibus novamente!
Certa vez, Pinguim encontrou uma bucha velha de lavar carro largada na areia da praia e interessou-se muito por ela. Era macia, mal cheirosa e bem leve. Mordendo-a, correndo e pulando , em um dado momento descobriu que ao jogar a tal bucha para o alto ela voava com o vento que soprava forte. Adorou a brincadeira... Passou horas jogando- a para cima e correndo atrás dela enquanto era carregada para longe dele. Pulava alto no ar, abocanhava-a com habilidade, corria mais um pouco e a arremessava de volta ao vento enquanto seus donos estavam no mar.
E assim passaram-se os dias... Pinguim sempre acompanhando os donos e surpreendendo a todos com suas artimanhas.
Certa manhã, Mogli foi cedo para o centro e Jussara ficou em casa cuidando de um braço machucado. As horas foram passando e ela então, resolveu dar uma volta com o pequeno companheiro para eles se divertirem um pouco na praia. Demoraram-se algum tempo e como o sol começou a arder tomaram o caminho de volta à casa. Jussara chutando a água e Pinguim , ora pulando alto tentando abocanhar as gotas que voavam, ora perseguindo a espuma que deslizava na areia. Chegaram finalmente na entrada da rua onde moravam e Pinguim resolveu ter com o cachorro da casa da esquina. A cerca de arame vazado tinha espaço justo mas suficiente para ele passar e ir ao encontro do amigo. Ao tocar a cerca contudo, sentiu o corpo estremecer e o coração disparar. Um ganido ecoou dolorido e o cachorro se debateu. Jussara correu a acudi-lo e percebeu que a cerca estava eletrificada. Apavorada e impotente tentou desvencilhar o amigo com um pedaço de pau. O pobre animal debatia-se, Jussara chamava por socorro. Enfim, Pinguim assustado conseguiu passar para o outro lado. Trêmulo e ferido, lambeu-se um pouco e olhou para a dona cheio de gratidão. O outro cão aproximou-se dele, mas agora ele não estava mais interessado em brincar. Sentia-se exausto, com o corpinho mole. Olhou novamente para a dona do lado de fora. Ela queria chamá-lo , abraçá-lo mas ficava ali, calada com olhos apreensivos cheios d'água. Pinguim levantou-se. Jussara estendeu o braço sinalizando para que ele não viesse ao seu encontro. O cãozinho fiel , contudo, queria a companhia da dona. Jussara pediu-lhe que lá ficasse. O cãozinho queria seus braços. Jussara insistiu chorosa. Não, não, Pinguim... Fica! Mas ele arremessou-se de volta à cerca . Tocou o arame com o focinho delicado. Um ganido , um choro e um grito agudo encheram o ar.
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