A PALAVRA DO POETA
May Parreira e Ferreira

O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.
(Poemas inconjuntos - Alberto Caeiro)

Faz tempo que eu nunca conheci quem crescesse no desaviso, às avessas de Álvaro de Campos, que só conheceu campeões em tudo. Seu poema me atingiu em linha reta o peito, quando eu era romântica e ginasiana. Hoje em dia, quando estou deprimida também me pergunto, Onde é que há gente no mundo, mas minha compreensão das coisas mudou.

Concordo com o poeta que errar é essencialmente estar cego e surdo, e mais, é estar envolvido. Quando estamos apaixonados, o que nos envolve é um sofrimento, uma turbulência, um estado mental, mas não é um pensamento. Estar apaixonado é errar.

Da janela de meu estúdio, onde neste momento escrevo, eu vejo um pássaro se defrontar com sua imagem no vidro da janela do andar superior. Ele pousa no galho da árvore e ataca o que ele pensa ser seu rival. Pá, e a ave bate na janela. Novamente vem ele, pá, e quase foi-se o bico. Neste vai e vem, minha gata o observa atenta, sobe cuidadosamente pelos galhos finos da arvorezinha, espera, e pá, quando o pássaro despenca pela milésima vez, a gata dá o bote. Eu peço, Deixe o bicho, Magata, ele já deve estar cansado. Ela me olha como que a sorrir da ingenuidade do coitado. 

Temos desta historinha, o quê. Acho que o pássaro não pensa, esteve o tempo todo apaixonado, numa luta inglória, tomado por um estado mental. O instinto não o permite aprender com a experiência. Estar envolvido pelo próprio reflexo não o deixou perceber a fêmea no outro lado do muro, e o fez cego à gata que se aproximou. 

Quem, num arrebatamento, já não passou por isto. O coração é taquicárdico, as mãos suadas, o apetite some, a insônia aparece, todos os sintomas de sofrimento ou angústia. E desde que o mundo é mundo, o mundo pertence aos enamorados, mesmo que o alvo da paixão seja o poder, a glória ou o dinheiro.

Palavras de amor, palavras de desespero, palavras do poeta. Poeta que erra, que mostra o seu erro e diz, Olhem, eu errei. Suas palavras são lenitivos à alma, são palavras de conforto, são palavras que dizem o que sentimos, que nos tornam humanos e iguais. Bem-aventurados os poetas e o clarão do luar, eles existem e nós aceitamos seus mistérios. O poeta jamais diria, Erra uma vez e aprende.

Se a imagem refletida n'água pudesse errar, o destino de Narciso teria sido outro. Aquele que cresce no desaviso, aquele que vive sem sofrer, que erra e não aprende, não vai entender o que digo. É preciso ter a pele arrancada a fogo, ter o ventre aberto a ferro, para olhar o pássaro na janela e sentir piedade dos que não pensam.

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