BUMERANGUE
Luís Valise

 
 
...Cuando calienta el sol, aqui en la playa... Fagundes acordou assim. Inspirado, meio merencório, com o romantismo à flor da pele, cantando baixinho enquanto examinava a própria cara no espelho do banheiro: 

- Faga, meu velho, tá na hora de tomar jeito. Trinta e quatro no lombo e ainda comendo a comida da mama? Se toca, considerado, lá fora alguém te procura, louca pra sujar o avental de ovo e limpar o ranho de uns pirralhos. Chega de putanhice e vai à vera! Deixe que o tão falado amor, aquele mesmo que vês no cinema e a todos deixa com cara de parvos, quebre a couraça desse coração empedernido e te faça sentir do mel a baba, o gosto, o visgo...

Se por acaso tivesse um caderno à mão, Fagundes faria uma redondilha, já que além de boêmio era poeta bissexto, dos maus. Parnasiano até onde a vista alcançava, sentia no peito uma bujarrona panda, enfunada pelo bafio dos bons presságios.

- É hoje. Eu sinto que hoje encontrarei minha Dulcinéia!

A mesa posta com carinho, o café-com-leite, quentinho, o pão estalando de fresco quase o fizeram mudar de idéia. Na outra ponta da mesa, orgulhosa e realizada, a mama lambia a cria. Seu filho, seu homenzinho, tão dependente dela, tão razão da sua vida.

- Mãe, acho que vou me casar. Quantos netos a senhora quer?

A mãe deu uma risada aberta, fechando no peito a pontada do ciúme.



A água morna deslizou no peito de Mayara. A mão passou o sabonete e sentiu os mamilos duros, prazenteiros. Lavou com cuidado o sexo, para não despertar ainda mais o tesão de camponesa. Nascida e criada na cidade, fantasiava uma trepada no mato, o cheiro das flores, o som do regato... Há quanto sozinha? Raros os homens que a atraíam, mais raro ainda os disponíveis que valessem à pena. Antes só que mal acompanhada. Mentia pra si mesma, e conseguia conter as lágrimas.

A cozinha vazia e limpa, quieta. Nem tinha vontade de pegar o iogurte na geladeira. Saiu sem comer. A estação do metrô cheia como sempre àquela hora. O trem parou, nem precisou andar, foi levada pela turba, deixava-se levar. Lá dentro o desconforto, o reflexo nos vidros embaçados, corpos cansados já pela manhã. A vida desvivida.

Não sentiu o tempo passar: um pouco no trabalho, um pouco na mata; um toque do telefone, um canto da cotovia. 



Na hora do almoço, no balcão da lanchonete, sentiu-se observada. Endireitou o tronco, virou a cabeça na direção de onde vinha o calor. Ele a olhava com um meio sorriso. Ela procurou lembrar-se como estava vestida. Acalmou-se. Fingiu desinteresse e reparou no terno bem-passado, camisa engomada, gravata cara.

Um amor foi jogado no ar: 

- Posso pagar o café? Fagundes, economista, solteiro. Também posso ser sincero. Fumo e bebo com moderação.

Ela ocultou a camponesa:

- Eu não tomo café. Úlcera nervosa. Não suporto cheiro de cigarro. Bebida, nem pensar. Mayara, letras incompleto, solteira graças a Deus. Também posso mentir. Não falo com estranhos. Passe bem.

Perto das onze da noite Fagundes caprichou no perfume e ia saindo. A mãe, mais calma com a falta de novidades, brincou:

- Lembra da tua pergunta de hoje cedo? Um casal está bem.

Fagundes jogou um beijo, fechou a porta e saiu pra rua. No céu, uma lua nua, como um verso de pé quebrado pela volta do bumerangue.
 
 

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