SEM ERROS
Beto Muniz

 
 
Eu não deveria ter vergonha de chorar, mas os olhares curiosos que recebo dos motoristas em volta inibem a sensação de alívio que se apodera de mim. Constrangido com a fraqueza impressa em meu rosto, tento disfarçar as marcas com os óculos escuros. Débil tentativa, as lágrimas se mostram mais fortes, escancaram as tramelas dos olhos e escorrem pela face refletindo o sol que entra pelo vidro lateral zombando do meu disfarce fajuto.

Meu choro não tem um porquê definido. Em meio à procissão de veículos no elevado Costa e Silva, o Minhocão, onde estou todas as manhãs a caminho do escritório, eu fui murchando, encolhendo por detrás do volante até finalmente explodir em lágrimas silenciosas e despropositadas. Não estou triste, não me sinto triste e não é a primeira vez que me acomete esse despropósito. Na primeira vez eu busquei as causas numa saudade qualquer, numa dor voltando do passado ou num amor esquecido, mas não encontrei ecos de razão dentro do meu coração. Não há cacos de sentimento quebrado e a solidão não me faz medo maior que o de me furar um pneu à noite numa esquina paulistana qualquer. Depois eu quis culpar pressões psicológicas que me chicoteariam diariamente no trabalho, mas, profissionalmente, sou livre como um pardal. Na terceira vez eu voltei para casa e abri meu baú de lembranças sem encontrar razões para as repetidas crises de choro em pleno trajeto de casa para o trabalho. Agora está acontecendo novamente, estou em prantos, e o motivo bem pode ser este congestionamento diário repleto de intolerância, violências e medos. Pela manhã vejo a moça ser assaltada no carro da frente sem poder ajudá-la, no meio do dia o motoqueiro atropela um idoso e foge, à noite os perigos são dobrados e as histórias se repetem tendo-me por testemunha imóvel. Impotente, eu choro.

A possibilidade de ter encontrado uma desculpa seca os meus olhos e acelera meu raciocínio. O ir-e-vir é o único momento do dia em que estou só. Rodeado de iguais, mas imerso num mundo particular construído com aço e obedecendo ao percurso escrito com asfalto, estou à mercê das circunstâncias que se apresentarem, sejam elas boas ou más. Preso, oprimido, numa rota imposta pela necessidade de conquistar o pão de cada dia, eu devo obedecer ao comandante dessa procissão que ordena andar, parar, andar, parar, parar, parar, parar... Minha liberdade de ir e vir cerceada por espontânea vontade e adequada ao conforto do ar condicionado. Não percebi que estava me prendendo e agora estou em pânico diante do horizonte de latas coloridas brilhando a frente. Dentro de mim há uma urgência de escapar, de respirar outro ar, de desacelerar o coração que galopa feito cavalo desencilhado recém. Metade de mim está dominada por um pavor crescente, irracional, um medo de tudo, medo de nada, de ser normal, de não ser... A outra metade mantém a lucidez que me faz soltar o cinto de segurança, afrouxar o nó da gravata, limpar o suor gelado na testa e permanecer dentro do veículo. Aumento a potência do ar frio e respiro fundo. A razão vai ganhando a batalha e a esperança de vitória libera novo fluxo de lágrimas. Não mais disfarço, tiro os óculos e deixo as lágrimas correrem. Ainda pareço desesperado, no entanto estou estranhamente em paz com meus medos. Assisto a mim mesmo como num teatro onde a situação proposta pede para o ator solidificar o desespero. Eu choro convicto de minha ótima atuação. Sou raro intérprete, capaz de dominar o personagem e fazê-lo sofrer toda uma amargura que o ator não sente e, mais, está imune a ela. Tenho o domínio total da platéia a minha volta e também do meu espaço, sei cada gesto que devo esboçar, cada soluço que vou emitir e até mesmo quanto de lágrimas devo deixar rolar. Estou feliz, plenamente realizado, quando deixo cair a lágrima final.

O carro à minha frente finalmente se movimenta, estou extasiado, quase febril aguardando que desça a cortina, que a luz se apague e os aplausos espoquem. Um silêncio decepcionante me apresenta a realidade e o veículo a frente é apenas um espectro se movendo através do véu salgado que cobre minha visão. Limpo os olhos com a manga da camisa e percebo o espanto carinhoso da moça feia ao lado. Ela segura o volante com as duas mãos e se condói de mim. Pega em flagrante delito de vigiar as lágrimas alheias, ela não sabe se disfarça ou sorri sua solidariedade ignorante e, indecisa, oferece um espasmo facial que fecha a tramela dos meus olhos e ressuscita o cínico em mim. Abro uma gargalhada debochando de todos nós, de nossas loucuras, e acelero queimando o asfalto. Não ouço aplausos e nem vaias.
 
 

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