NA REAL
Viviane Alberto
Sei que não acontece só comigo, por isso me sinto à vontade para falar a respeito: mau-humor. Sabe a paciência? Não me lembro onde foi que a deixei. Sei também que é só uma circunstância, um período e que vai passar. Mas enquanto ele não passa, vou curtindo meus dias de rabugice insuportável.
Tudo me irrita. Mercado fechado irrita. Programa de televisão irrita. O panfleto no sinal irrita. O caminhão de lixo irrita. Cheiro de pastel da feira me irrita. Beijo de namoradinhos no cinema me irrita muito. Sabe, aqueles splecms, splecms, barulhinho de saliva, pequenos suspiros, me irritam. Os filmes têm me irritado, tudo muito chato. E nem adianta concordar com a cabeça, porque a chata da vez sou eu! Tá vendo do que estou falando?...
E lá estava eu, no auge do mau-humor, no ponto de ônibus. Aliás, isso me faz lembrar que eu bem que merecia um título honorário da Associação Paulista de Transporte Coletivo, já que tenho recorde absoluto de crônicas que falam em ônibus. Ou não?
Voltando ao ponto, ao meu ponto já que essa é uma crônica egoísta, claro que eu já estava mal humorada porque o ônibus estava atrasado. Tudo bem, existe a pequena possibilidade de eu ter ido muito cedo para o ponto, ignorando o horário do tal ônibus, mas é uma possibilidade pequena e nós não vamos discutir, não é? Então, o ônibus não vinha, mas um outro carro passou e captou minha atenção, na hora. Era um desses utilitários - que eu não vou dizer que era uma Saveiro, pra não fazer propaganda gratuita para a Wolkswagen - com um sujeito em cima, segurando uma lâmina de espelho. Mas não era um espelho qualquer, era um big espelho. Na minha observação de lince dava pra calcular uns 1,5 x 2,0m. E o cara simplesmente estava em pé, segurando aquele espelho maior do que o carro (sobrava um tanto pra fora). Ali, ele e o espelho. Nada de papelão, nada de amarrações, nenhum isopor e, principalmente, nenhum pedaço de plástico bolha! Eu não sei qual é o padrão universal para transporte de espelhos em vias públicas, mas não consigo conceber o transporte de qualquer coisa quebrável sem plástico bolha. O plástico bolha, por si só, já justifica o transporte. Talvez nem fosse o fato do cara estar a uns 5km/h e o espelho refletindo aqueles muros sujos, as pessoas tristes e meu cabelo pedindo uma escova. Não. Nem me preocupava a força que o sujeito em pé na carroceria do carro estava fazendo pra se equilibrar e não cair, levando o espelho junto. Me indignou a falta do plástico bolha. Porque plástico bolha acalma. E eu queria tanto ser calma... Só de pensar nuns bons vinte centímetros de bolinhas de ar pra eu estourar já me sinto tão zen. Plec - ui, mas por que eu estava brava, mesmo? - ploc - ai, que vontade de rir - plec - olha que céu azul! Plec-plec-plec-ploc-plec-ploc-plec-ploc. Se eu pudesse ter um pedacinho de plástico bolha agora seria o nirvana!
O carro fez a curva e o espelho mal empacotado saiu do meu ângulo de visão exatamente no momento em que um pedreiro atravessava a rua segurando um pacote de bolachas*. Pronto, acabou meu mau-humor. A imagem daquele senhor todo sujinho de cimento e cal, segurando o pacote de bolachas recheadas (tipo wafle, morango e chocolate) me enterneceu de uma maneira que eu não sei se consigo descrever. Fiquei imaginando aquela vida tão dura de carregar pedra, lata de concreto, tijolo pra lá e pra cá e, no meio disso tudo, vontade de comer bolacha doce. Não era fome, porque fome é de qualquer coisa salgada. Era vontade de adoçar um pouco a vida.
Sorri e aprendi a lição. Era isso que eu também estava precisando: encontrar a doçura perdida.
* o Brasil é grande, em alguns lugares é biscoito. Mas pra mim é bolacha, mesmo.
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