FRACTAL
VIII
(OU UMA FÁBULA MEDIEVAL)
Sérgio Galli
O Príncipe instalado em seu suntuoso palácio, mergulhado em sua solidão, dialogava com o espelho; "Ah, se eu pudesse". "Posso!" A exclamação do espelho do Príncipe ecoou pelo salão octogonal. Acólitos, asseclas, bajuladores, estafetas, ajudantes-de-ordens, burocratas, tecnocratas e quejandos surgiram dos quatro cantos e encantados suspiraram: "Podemos?" "Não, esbravejou o espelho" "Eu posso, aposso!!", "Vós podeis apenas querer poder". "Podendo, podido, poderei, então..."
"Data máxima vênia, imbuído dos poderes supremos e terrenos, decreto:
Art.1o Os automóveis são donos das cidades.
Art.2o Todas as calçadas devem ser destruídas e no lugar delas, tudo será asfaltado, ou seja, só haverá ruas.
Art.3o Todos os pedestres devem ser exterminados. A cada pedestre atropelado, o automóvel receberá um ponto de bonificação.
Art.4o Que sejam desligados todos os semáforos.
Art.5o Sem calçadas, sem pedestres, sem semáforos, devem ser extintos todos os cidadãos para que o automóvel tenha livre trânsito, livre-arbítrio.
Art.6o Que se revogue as disposições anteriores.
Art.7o Esta lei entrará em vigor na data da sua publicação; "
Assim, o poder se fez através de editos, proclamas, medidas provisórias, propinas, cargos de primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, décimo primeiro escalão. O Príncipe em suas rotineiras viagens aos reinos ultramares fazia discursos em defesa da justiça social, de uma justa distribuição da riqueza, por uma mundialização que possibilitasse uma melhor qualidade de vida aos pobres, enfim, a social democracia. O Príncipe era homenageado, recebia títulos, faustos jantares. Poliglota, agradecia na língua dos anfitriões.
Enquanto isso, no seu reino, o espelho proclamava: "o único projeto do meu governo é coletar impostos. Ajuste fiscal a ferro e fogo. Que se aumente os impostos. Tunga neles! Tudo em nome do superávit primário! Elimine-se o déficit público nem que seja com o garrote vil! A malta, a choldra que comam grama e divirtam-se com os big brothers, gugus, Faustão, casa dos artistas, clone, Raul Gil...! Sem hedge! Nossa blindagem será feita com aço americano!"
Assim, caminhava a vida no reino das mil e uma noites. Cidades maravilhosas. Samba, mulatas, Pelé. Povo cordial, um reino sem furacões, sem trovões, sem maremotos.
O Príncipe e o espelho. O outro refletido nele. A vaidade espelhada face sorridente de que só vê a si mesmo.
Ambos, Príncipe e espelho, finalmente escreveram um único discurso, com leves discordâncias, cujo teor está aqui sintetizado:
"Que não haja na face da Terra um dia, um dia sequer, sem guerras. É preciso inventar um conflito em cada quinhão do planeta. Temos de afagar os militares e a indústria bélica. Temos de retribuir o apoio da indústria petrolífera. Continuaremos em nossa política ambígua e hipócrita de fingir que combatemos o narcotráfico ao mesmo tempo em que necessitamos desse dinheiro sujo que precisamos limpar nos paraísos fiscal..."
Mudar para que tudo continue como está. Esse era o lema do Príncipe enquanto encarava o espelho: "Ah, seu eu pudesse..."
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