SE EU TIVESSE AO MENOS
MUDADO UM BOCADINHO...
Raquel Macruz

Sentada, brincando de construir o mundo, vivendo personagens fantásticos, ela ouve lá longe um som que não quer ouvir... Faz de conta que não é com ela, disfarça, fala um pouco mais alto, cantarola , tapa os ouvidos. O chamado, contudo, se repete. Ela continua concentrada em seu diálogo e uma vez mais a voz torna a ousar. Prevendo a insistência da mãe, ela deixa escapar um tímido "Quê?" e continua engajada em seu sério compromisso com a fantasia. Novamente a voz volta a ecoar, agora com uma certa dose de impaciência. Dando-se por vencida, ela se levanta com os olhos ainda pregados em seu teatro, dando continuidade ao diálogo interrompido enquanto desgruda as calças do traseiro suado e dirige-se à porta do quarto. Empurra-se pelo corredor, a cabeça voltada para o mundo que ficou lá trás e aproxima-se silenciosa por traz da mãe que ocupa-se com a correção de uma dezena de pacotes de provas de alunos, ainda com esperanças de que esta desista de chamá-la e destaque outra vítima para a missão inoportuna.

- LA...- o coraçãozinho até dispara... ela vai recrutar a irmã... - RAQUEL!... - que pena, foi alarme falso. Ela sempre confunde os nomes e chama sua irmã de Ra-Laura e a ela de La-Raquel...

- Tô aqui, mãe...

- Vai lá no armazém e me compra um maço de Minister com filtro que o meu acabou... Eu não quero sair daqui enquanto não me livrar dessas provas! Taqui o dinheiro e cuidado pra atravessar a rua!

- Aaahhh... - suspira a menina que pega o dinheiro e sai desanimada da sala. Vai para o quarto buscar seus sapatos, olha para os lados, olha para trás... a mãe na sala, a irmã lendo na cama da mãe... morde o lábio inferior pensativa... Alguém no cenário abaixo lhe faz uma pergunta e ela se diz ocupada, não pode responder. Olha de novo e vê a mãe lá na sala e agacha-se tocando os bonecos, a princípio, apenas levemente. Não resiste e responde à pergunta deles, quando enfim, entrega-se novamente, de corpo e alma, à brincadeira. Começa sussurrando, mas conforme vai-se envolvendo, o tom de voz passa de discreto a animado e finalmente, começa a dar gritinhos , risadas até que por fim, a multidão exaltada se manifesta em altos brados denunciando a farra. 

- La-Raquel! Você ainda tá aí?

- Não, mãe, é que eu só vim por o tênis!

- Então, vai, filha, que eu tô louquinha prá fumar...

Os minutos passam, o silêncio volta ao quarto e a mãe volta a se concentrar nas provas. De repente, um gritinho estridente ...

- RaQuel!- desta vez saiu o nome certo!- Para de enrolar e VAI LOGO!

- Já vou, manhê! La-la-la lará... La... Tum-tum- escabrum! Tum- tum- escabrum ! TUM-TUM- TUM!!!!! TUM! TUM TUM ESCABRRRUUM! TUM-TUM- TUM!!!!! TUM! TUM TUM ESCABRRRUUM!

- Ai que chatice de barulho! Pára, Quel! Não tá nem dando pra eu ler com esse tum tum tum!- reclama a irmã.

- Chata! Tum-tum- escabrum! Tum- tum- escabrum ! TUM-TUM- TUM!!!!! TUM! TUM TUM ESCABRRRUUM!

- PÁRA! - grita a irmã desesperada tapando os ouvidos.

- Raquel! Vai já fazer o que eu mandei! Anda!

- Você é mesmo uma chata, Laura! Tinha que me delatar, né? - delatar era uma palavra muito chique!

- Eu hein?! Você berra feito uma maluca! Não dá prá ninguém saber que você taí, né?

- Parem as duas que agora eu é que estou me desconcentrando com esse bate- boca! Raquel, some! Ra-re-ri-ro- rua!

- Isso não é justo... Por que é que EU é que tenho que ir?... 

- Anda logo e se livra da tarefa de uma vez!

- Tá bom... Tô indo...

Calça seu bamba Dinamite com as cores já desbotadas e um chulé que não sai mais, levanta-se e parte acelerado pra poder voltar logo. No corredor escuro encontra o menino do apartamento de cima e conversam um bocadinho. Ela explica dizendo que não pode se demorar porque tem que ir ao armazém.

- Comprar o quê?

- Hummm... é... CIGARRO! - quase me esqueci... desta vez foi por pouco...- Tchau! Tum tum escabrum! Tum tum escabrum! 

- Raquel! Você não vem brincar hoje?- grita o Márcio no pátio.

- Ah, talvez mais tarde! Eu tô acabando uma brincadeira bem bacana lá em casa!

- Então, tchau!

Atravessa o pátio e alcança o segundo bloco de apartamentos. O apartamento da Dona Miroko dos 5 filhos de um lado e o da Katia, sua amiga, do outro. Depois desses dois apartamentos o bloco perde a graça porque só tem gente chata... Ganha a rua e assiste atenta à costureira japonesa que mora em uma das casinhas vizinhas ao prédio catando a tartaruga fujona, que uma vez foi parar no meio da rua e acabou sendo atropelada por um caminhão. Seu casco ficou rachado e a costureira teve que colar o estrago com cola-tudo.

Atravessou a rua com cuidado e chegou ao armazém. Tinha gente na frente e ela teve que esperar. Ficou passando o dedo nos potes, se divertindo desenhando no pó, olhando os doces um bocadinho. Eles até tinham uma cara boa, mas nenhum deles batia o triângulo da doceira ao lado. Ai que dava até água na boca. 

- Pois, não?

- Oi Seu Armando, eu queria... eu queria... ai... - Pensa rápido...o que é mesmo que eu queria? Era... o que foi mesmo que eu disse pro Tavinho que eu vinha comprar? Ai... bom... eu tenho dois cruzeiros aqui... O que é que dá prá comprar com dois cruzeiros? Não era óleo, não era sabão... Ah... acho que era ovo... É... ovo! Assim a gente toma gemada agora no lanche! - Uma dúzia de ovos, Seu Armando! E eu quero o troquinho em moeda mesmo, que a minha mãe não gosta que a gente chupe bala! Brigada! Tchau!

Uma semana depois o mecânico da oficina estava com serviço até o pescoço. Era um mais não poder de trabalho. Carros de todos os tipos, problemas dos mais variados e para piorar as coisas, o ajudante do mecânico havia ficado doente e faltara no serviço. A tarde caía e o relógio parecia vencer a corrida. A luz entrava fraca pela janela da oficina e impedia o bom andamento da função, foi quando a dona do fusca ano 70 chegou para saber de seu carro. 

- Está muito escuro aqui, não? Vai fazer mal para sua vista!

- A senhora poderia fazer a gentileza de acender a luz para mim, então ?

- Ihh... queimou !

- Então, deixe estar... agradecido mesmo assim.

- Acabei de fazer as unhas, vai ver se tem uma lâmpada no armário pra gente trocar...

- Não precisa, não... Pode deixar assim mesmo...

- Olha, eu acabei de fazer minhas unhas, se colocar as mãos no armário vou acabar estragando tudo...

- Como eu já lhe disse, não precisa se preocupar com a luz, não... Já estou encerrando meu trabalho e vejo esse negócio da luz amanhã.

- Ah... você quer saber do que mais... acabei de me lembrar que não tem mais lâmpada no armário, não... Usei a última na semana passada quando queimou a luz do banheiro! Faz o seguinte, pega dois cruzeiros na minha bolsa, corre lá no armazém antes que escureça totalmente e compra uma lâmpada de sessenta watts aqui pro quarto.

- Que quarto, minha senhora? E eu já lhe expliquei que...

- Ai! Para um pouco com isso, menina! Vai que senão fica tarde e vocês vão acabar ficando no escuro hoje.

- Ah manhê... vou ter que parar de brincar de novo pra ir ao armazém?!

- E vê se não esquece o que tem que comprar desta vez, hein? Uma lâmpada de sessenta watts... Vai repetindo pelo caminho pra não dar bola fora de novo!

- Ihh... já esqueci... Sessenta o quê?

- Watts... Velas, tá bem? Uma lâmpada de sessenta velas... Vai, vai, vai...

A menina ergueu-se sem paciência e foi tirando a fantasia de mecânico. Passou no banheiro para lavar as mãos e tirar o giz que era a graxa do rosto. O caldo verde escorria das mãos para os braços enquanto ela produzia bolhas de sabão encardidas. Fechou a porta da rua atrás de si e foi embora. Dois minutos depois abre a porta de novo e dá com a mãe esperando por ela. Uma das mãos na cintura, a outra erguida segurando o dinheiro no ar e cara de acho que você esqueceu alguma coisa... A menina não queria nem olhar para a mãe, mas não conseguiu. Segurou a risada, apertou os olhos, pegou o dinheiro e saiu novamente... "Uma lâmpada de sessenta velas... Uma lâmpada de sessenta velas... Uma lâmpada de sessenta velas"...

O caminhão parou bem no meio da rua. Os homens foram logo descendo, gritando e se organizando. A escada era enorme e por alguns minutos ficou atravessada na rua impedindo que os carros passassem. Os meninos interromperam o jogo de bola na travessinha, a costureira largou um pouco o trabalho e o Seu Armando foi ter com o Pitoco do bar da esquina. Os homens subiam e desciam, buliam uns com os outros, falavam alto e gesticulavam. A empregada do Seu Carlos saiu na janela e logo a platéia estava pronta para assistir ao grande espetáculo.

- Corre , Raquel! - apressou o Tavinho - É hoje! Eles vão colocar as tais das lâmpadas de "merculo"! "Já-tão" lá! 

- Será que acendem hoje?

- Acho que sim! Tomara que sim! Dizem que a rua vai ficar clara "que nem" dia!

Os carros se espremiam para passar e iam bem devagarinho para ver os homens pendurados na escada lá em cima do poste. 

A função não custou muito a se encerrar e logo os homens se aboletaram no caminhão que saiu chacoalhando desajeitado pela rua. Os meninos voltaram para o jogo de bola, a empregada do Seu Carlos acenou um tchau para a costureira e quando a menina viu Seu Armando entrando no armazém sentiu o coração quase que pulando para fora do peito:

- Sessenta velas!- cuspiu rápido as palavras cheia de pressa. 

- Sessenta? Que é isso? Encomenda pra algum terreiro de macumba?

A menina não entendeu bem o comentário e ficou lá em pé, só olhando pro Seu Armando. 

- Sessenta é muita vela... Quanto dinheiro você tem aí?

- Dois cruzeiros...

- Então não dá prá levar as sessenta.

- Quantas dá pra levar? - que estranho... minha mãe sempre acerta no dinheiro... - Uhh? Ah, tá... então dá só quinze mesmo.

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