ESPERANÇA
Raquel Macruz
Gervásio acordou ao primeiro chamado da mulher. Saiu da cama com cuidado pra não acordar o filho pequeno que dormia aninhado no colchão de palha, coçou os fundilhos, olhou a mulher que amamentava o mais novinho dos rebentos e soltou um "Oi, Zi" em meio a um bocejo escancarado. Dirigiu-se ao canto do cômodo onde mantinham uma lata com água fresca e lavou o rosto ainda cansado. De repente deu-se conta da importância do compromisso que tinha e arregalou os olhos sobressaltado. Deus o ajudasse a conseguir aquele trabalho. Depois de quase dois anos afastado das obras e um pé deformado pelo acidente, talvez daquela vez conseguisse finalmente uma colocação. O primo do Sebastião garantira-lhe que o tal dono da confecção era um bom sujeito. Não importava que ele não tivesse conhecimento do trabalho ou experiência anterior. O tal homem estava mesmo atrás de alguém honesto, disposto a aprender o ofício e que fosse respeitador dos horários. Tudo mais era detalhe para ele, assim diziam. A lâmina cega dificultava o barbear e a água estava gelada. Gervásio secou o rosto numa camisa velha e admirou o terno desbotado que o aguardava num cabide improvisado atrás da geladeira. Colocou a camisa, a casa vazia de um dos botões oculta sob o cós da calça. O paletó, mesmo um tanto curto e desajeitado, o fez sentir-se elegante em suas listas brancas estreitas. A calça um pouco curta mostrava um bom pedaço de meia bem branquinha que Alzira colocara para quarar dois dias antes.
- E então, mulher? Como é que estou?
- Tá muito lindo, Gervásio! Até parece que vai casar! Toma um pouco do café que eu passei inda agorinha... E engole um pedaço de pão pelo menos porque a viagem até o Palhoção é bem longa. Você pegou o nome dos ônibus direitinho?
- Peguei, sim. Você separou uns troquinhos pras passagens?
- Tão ai dentro do bolso do paletó. Junto com seus documentos.
- Bom, então eu já vou indo - completou ele engolindo o café açucarado. Me deseja sorte, Alzira. Porque se eu conseguir mesmo esse emprego tiro a gente desse miserê desgraçado. Você sabe que eu nunca quis essa vida pra gente, né? Se eu pudesse arrancava vocês daqui desse buraco ainda hoje.
- Vai, Gervásio. Para logo com isso e vai pegar esse ônibus antes que você se atrase...
Gervásio beijou a mulher, acarinhou o bebê novinho e lançou um olhar terno ao pequeno Eusébio que ressonava despreocupado na cama do casal.
Ronaldo era um cirurgião de renome, famoso por suas piadas e bom humor. Quando desligou o telefone já foi logo imaginando que a noite seria das boas. Toda vez que ele e a esposa se reuniam com os colegas dela, todos endoscopistas e japoneses quase que em sua maioria, eles se divertiam muito. O grupo animado ia aos melhores restaurantes japoneses da cidade e normalmente varavam a noite em meio a estórias, piadas e muito karaokê. Ao final de sua última cirurgia, a cabeça já desligando do trabalho, ele lavou-se e ligou para Lavínia para dizer-lhe que já estava a caminho de casa. Preparou um uísque enquanto a aguardava e depois de um banho rápido sentou-se no sofá apreciando a bebida e brincou de gargarejar um pouco para esquentar a voz. Cerca de uma hora depois, Lavínia saiu do quarto muito linda toda de azul. "Que danada essa japonesa, que sempre dá um jeito de virar minha cabeça..."
Quando chegaram ao restaurante o grupo todo já estava lá. Os olhinhos apertados brilhavam animados pelo saquê e as vozes se misturavam em risadas e cantoria. Ronaldo chegou abraçando e batendo nas costas dos amigos com suas enormes mãos e enchendo o ambiente com o vozeirão escandaloso. Lavínia sentou-se e aconchegou-se por um momento nos braços do marido.
O restaurante estava cheio. Cheio de almas brincalhonas, de gargalhadas, cores, música, bebida e alegria. As estórias saltavam das bocas fanfarronas causando explosões de risos. Comiam, bebiam, cantavam. As horas passaram rapidamente e os homens e as mulheres foram-se cansando da festa. Os casais ergueram-se , os solteiros despediram-se.
Ronaldo aconchegou-se nos braços de Lavínia. Seus olhos vermelhos inchados, voz se arrastando no mesmo ritmo do corpanzil sedado. A chuva caia fina lá fora. Ronaldo desvencilhou-se dos braços da mulher e espalhou com as mãos as gotas que lhe molhavam a face e o pescoço. Respirou pesadamente e buscou as chaves em seu bolso. Apalpou aqui e ali mas nada encontrou. Lavínia retirou as chaves da bolsa, destrancou a porta e fez entrar o marido cansado. Recostado no banco ele ainda murmurou algumas palavras antes de cair no sono enquanto ela ligava o som. A chuva parou. O farol fechou. O relógio da rua mostrava que a manhã estava bem próxima. Fez o retorno, entrou na rua onde moravam e quando acionou o portão eletrônico para entrar na garagem, Ronaldo abriu os olhos sobressaltado e fez a mulher estancar.
- Que horas são?
- Cedo... bem cedo...
- Não, Lavínia, tô falando sério... Eu tenho uma cirurgia às 6:30.
- Que cirurgia, Ronaldo... Você tá mais pra lá do que prá cá...
Ronaldo apertou os olhos tentando ver as horas em seu relógio.
- São quase cinco e meia... Eu vou seguir direto.
- Cê tá maluco, Ro... É melhor você ligar pro hospital e cancelar a cirurgia...
- Fica quietinha, Japoneusa... Eu tô legal... Esse soninho já deu prá me refazer... Vai lindinha, vai, que senão eu me atraso.
- Me liga quando chegar lá... Maluco.
Ronaldo ajeitou o banco e os espelhos, trocou o CD, deu ré e saiu em direção ao hospital. O sono ainda o atrapalhava, e ele coçou e espremeu os olhos para tentar espantá-lo. O farol fechou, ele diminuiu a velocidade, olhou para os dois lados e cruzou o farol com cautela. A chuva voltou a cair. De repente um mal estar tomou conta do homem e ele fez uma careta de nojo. A boca se encheu de saliva, outro farol se fechou. Novamente ele reduziu e olhou para os lados com vontade de se entregar. Um carro vinha em alta velocidade e ele teve que esperar. O enjôo aumentava. A chuva aumentava. Outro farol vermelho. Outro carro. O tempo parecia se arrastar. As casas e prédios passavam lentamente pela janela do carro. A angústia de querer chegar.
Gervásio pensava em Alzira. Ela separara as moedas em montinhos para a passagem de cada ônibus. A informação do cobrador estava certa e ele achou o caminho até a avenida sem dificuldade. Agora só faltava mais um ônibus e se as indicações que tinha estivessem corretas, chegaria na confecção do Seu Lyn dentro de quase uma hora, se não pegasse trânsito. Olhou para cima e viu uma nesguinha de céu limpo na escuridão das nuvens pesadas. A chuva parecia
estar parando e ele deu graças a Deus. Encolhido no banco do ponto de ônibus, incomodado pelo frio e pela umidade ele olhou para o relógio iluminado da rua. A chuva voltou a castigar e ele se preocupava em manter-se o mais protegido possível para não molhar a roupa, mas ao mesmo tempo tendo que se expor para ver se o seu ônibus vinha vindo.
A chuva passou a cair pesada e sem dó. O ônibus virou lá em baixo no começo da avenida, Gervásio preocupado olhava o céu com o coração apertado. De repente, contudo, tudo mudou. O céu fechou as comportas, o barulho ininterrupto de água caindo foi cessando, cessando até que parou por completo. Um vento soprou de leve e o dia começou. As feições do homem preocupado relaxaram e um suspiro de alívio escapou da boca ainda seca. Pisou para fora do abrigo experimentando o tempo com as mãos, olhando o céu sorridente. Examinou seu corpo, suas roupas. Os pés encharcados, mas a roupa ainda estava apresentável. Olhou para o fim da rua e um ônibus se aproximava. Fixou os olhos e viu que era o carro que esperava. Deu graças uma vez mais e sentiu as moedas no bolso. Adiantou-se e postou-se bem na beira da calçada. Fez sinal quando ônibus estava um pouco afastado ainda e resolveu que sinalizaria mais uma vez para garantir que o motorista o visse. O ônibus foi-se aproximando do ponto. Um carro importado prata surgiu, de repente em alta velocidade na pista do meio da avenida e cruzou a frente o ônibus que diminuiu a velocidade bruscamente. O carro continuou em alta velocidade e estancou na frente do ponto aos pés de
Gervásio. A porta se abriu e o vulto de um homem enorme surgiu debruçando-se para fora do carro.
Gervásio cerrou os olhos. O ônibus se aproximava, a porta do carro prata fechou-se novamente e ele partiu. Ronaldo cerrou os olhos, enxugou a testa, limpou a boca incomodado e olhou pelo espelho retrovisor. O ônibus alcançava o ponto e um homem vociferava, ora olhando em sua direção, ora olhando indignado para as vestes molhadas e imundas de vômito. Depois disso, Ronaldo nada mais viu. O ônibus tapou-lhe a visão e seguiu caminho.
Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.