POBRE MORTAL
Flávia Cintra
A sensação de desconforto começou dentro do avião. Sentada na poltrona do corredor, ouvindo a conversa dos estrangeirinhos sem entender mesmo que língua falavam, o arrepio subiu pela coluna, atravessou o coração e ruborizou meu rosto. Eu conhecia muito bem aquela sensação.
Mudei de posição, respirei fundo, olhei pela janelinha embaçada. Mas o chão parecia escapar. Me ajeitei e voltei a prestar atenção nas gargalhadas dos meninos, tentando me distrair.
Era sempre assim. Aquele vazio, aquela angústia sem explicação, aparecia do nada. Na mesma hora, pensei no Miguel. Há quando tempo será que ele não sentia a "nossa dor"? Desde aquela nossa última conversa, há não sei quantos anos, eu tinha me aquietado. O medo da morte tinha ficado adormecido até agora.
Aterrissagem, mala, táxi, sol: trégua.
Telefone, flat, Catarina, João Baptista: tudo continuava calmo.
Durante o almoço, lá estava ele de novo. Catarina e JB conversavam e eu sorria sem vontade, o inferno crescendo dentro de mim, um abismo me assombrando. Segurei firme na cadeira, o corpo amolecendo numa vertigem. Tomei um gole de vinho branco, apertei o guardanapo de pano no colo, esfreguei as mãos. Eles, distraídos, não notaram meu quase desfalecimento momentâneo.
Rua, rua, rua. Preciso de ar, preciso do sol.
Compras, risos, fotos, coca-cola.
Dei um beijo forte no rosto dele e descemos na Avenida Paulista. Seguimos a pé para casa, rindo como se nada tivesse me acontecendo.
Eu não queria ficar sozinha.
- Vamos tomar um sorvete de Baileys?
Oscar Freire, esquina com a minha Bela Cintra. Uma bola, no copinho, por favor.
- Hoje eu vou ao Terraço Itália. Ainda não conheço. Deve ser linda a vista de lá.
- E se a Tia Leth namorasse o JB? Hum...
- Ele odeia que a gente dê tchauzinho de fora do carro... hohoho
- Como é a história da galinha caipira?
Ai.
- Que foi, Frau?
- Nada... nada, não...
Droga, droga. Droga. Eu estava com medo do maldito pânico ficar mais de um mês, como da última vez em que ele apareceu. É incontrolável, mais forte que eu. "Vai embora, me larga, me esquece".
Catarina subiu a Casa Branca e eu continuei a pé pela Lorena. Agora que estava sozinha, o medo dominou de vez. Joguei os cabelos no rosto, pra ninguém ver que eu estava chorando. E a minha voz me torturava: "E quando tudo acabar? E quando eu morrer? E quando o mundo acabar? O que vai ser de mim? Onde eu vou estar? Eu não quero morrer nunca... não quero... Ah, se eu pudesse, se eu soubesse como parar o maldito tempo, esse meu eterno inimigo".
Água quente do chuveiro, música alta pra distrair até onde eu agüentasse. Depois a sua presença, o seu sorriso, o seu abraço e todas as luzes daquela cidade imensa: vidas, muitas vidas.
Dia novo. Mais um, menos um. Esperei que ele voltasse. "Vamos ver quem é mais forte".
Esperei e ele não veio. Dessa vez, foi bem mais rápido do que eu supunha. Traiçoeiro.
Não voltou, mas eu sei que ele me ronda, me espreita, zomba cruelmente de mim. E vai voltar a me atormentar até o fim.
Pobre de mim.
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