HÁBITOS
DIURNOS
Beto Muniz
Prefiro
dormir durante o dia e trabalhar no horário noturno. Eu e mais alguns
milhões de paulistanos, mas as empresas cismaram que durante o dia eu
sou mais produtivo e nada muda esse pensamento hierárquico, virou valor
incorporado nas empresas, quase um princípio fundamental. Ninguém contesta,
ninguém discute, mas se me pedissem uma avaliação (imparcial), eu poderia
apresentar inúmeras vantagens na troca do meu horário comercial. Falaria
por mim, que estou em São Paulo. No entanto, mesmo que analisasse outra
pessoa, por exemplo, no Rio de Janeiro, chegaria a uma conclusão lógica:
o cidadão prefere utilizar a praia durante o dia e trabalhar durante a
noite. Qual é a qualidade de vida do cidadão que pode surfar e se bronzear
qualquer dia da semana? Nem se compara com a do sujeito cuja caminhada
no Ibirapuera está restrita aos domingos e feriados.
Deixando o lazer de lado e partindo para o funcional, se o meu horário comercial fosse invertido, logo de cara eu já ganharia tempo na locomoção. Nada de engarrafamentos, nada de buzinas e também nada de motoqueiros arrebentando retrovisores como se fossem donos das faixas brancas. Concordo que as ruas parecem mais perigosas no escuro, mas o ganho na economia de combustível e nas viradas do pescoço é brutal. A noite o motorista pode mudar de faixa sem ter que verificar duzentas vezes se nos quatrocentos metros atrás vem algo parecido com um ensandecido sobre rodas. Basta acionar o pisca e olhar uma vez. Outro ganho seria para os meus pulmões "O ministério da saúde adverte: o trânsito de São Paulo causa câncer nos motoristas". Nos dias quentes, quem não tem ar condicionado em seu automóvel engole a fumaça emitida pelos caminhões que trafegam pelas ruas como se estivessem nas estradas. Velozes, enormes, mudando de faixa como se nossos minúsculos veículos não existissem e, caso existissem, não deveriam estar ali, ao lado... Tem o lado bom - maldade - eu sou do bem, mas confesso que adoro quando os caminhões mudam de faixa sem aviso e obrigam os motoboys a se contorcerem em malabarismos improvisados para escapar de colisões. É a revanche proporcionada por quem tem retrovisores fora do alcance das botinadas dos cachorros loucos. Independente da economia de combustível e retrovisores, a grande vantagem nesta suposta inversão de horário seria na conta bancária: gastei uma fortuna num par de óculos com lentes especiais na filtragem de raios solares. Quatrocentos "merréis" num Giorgio Armani para ser levado pelo bandidinho meia boca. Aposto que o gatuno vendeu por vinte "pilas" e comprou pedra. Safado! Mas a vantagem principal nessa história de trabalhar durante a noite, seria me ver livre dos pedágios instalados nas principais ruas e avenidas paulistanas. Há uma fórmula de arrecadação na cidade, que me parece organizada e planejada para levar meus trocados e meus graúdos. O primeiro funcionário desse sistema é uma garota de uns quatorze anos, bonitinha, simpática que me chama de "Doutor" enquanto oferece o jornal esportivo que estampa na capa uma matéria sobre a vitória do Timão. Não resisto, pego uma nota de cinco reais e compro. Quando recebo seis moedas de troco percebo que fui fisgado. Mas é tarde, não dá para voltar atrás e no farol seguinte um menino, menos de seis anos, para ao lado do meu carro. Pede um trocado enquanto desenha algo no vidro com a meleca que lhe escorre. Usa o dedo quando o vidro está entreaberto e o nariz quando está totalmente fechado. Não tenho coragem de ser agressivo diante daqueles olhinhos tristes e dou as duas moedas de menor valor tentando impedir que ele termine sua obra de arte. Ele se afasta e a obra inacabada permanece incomodando através do vidro e causando asco. É péssimo pintor mas é bom ator o danadinho, não acredito que improvise a performance, deve ter ensaiado caras e bocas durante algum tempo antes da estréia nas ruas. Até merece uns trocados pela atuação, mas ele é apenas parte da estratégia de mercado praticada para me tirar todas as moedas. O golpe seguinte é infalível! Um rapaz, esse com certeza com mais de dezoito anos, e desconfio que os óculos que ele tem na cara sejam da mesma marca e modelo que o meu Armani roubado, não tiro a dúvida, antes que eu diga qualquer coisa ele ensaboa o vidro ignorando meus gestos desesperados pedindo que pare. Lava o pára-brisa que já estava limpo e mostra os dentes num arremedo de simpatia. Sem alternativa eu peço que lave o vidro lateral onde estava a pintura inacabada do artista mirim. Sei que ele vai querer gratificação extra por isso e reservo duas moedas. Com isso restam-me apenas duas moedas do troco do jornal. Uma vai ficar no último farol, antes de chegar no escritório, pois a senhora com um filho agarrado à sua perna e tentando acalmar o outro pendurado no braço enquanto me oferta balas de hortelã não deixa alternativas. Ou compro as balas ou o filho de colo não vai parar de chorar a fome. Não resisto ao apelo soluçado, afinal não me custa mais que uma moeda garantir a amamentação do bebê. Ao menos são dois tabletes de balas por um real. O mesmo preço do refrigerante de quinta categoria que vou beber às seis da tarde, quando estiver parado no congestionamento da volta para casa sob um mormaço absurdo de cidade poluída... Ah se eu pudesse escolher! Seu eu pudesse trabalhar à noite! Com certeza não estaria com esse gosto de refrigerante quente na garganta, não estaria com os pulmões ardendo, não estaria com os olhos vermelhos e prejudicados pelos óculos comprados no camelô, não estaria ainda enojado com o desenho no meu vidro, não estaria pagando pedágio para trafegar em São Paulo. Sei que não adianta reclamar. O melhor que faço é tomar um banho e dormir, porque pela manhã recomeça minha rotina... Antes eu preciso reservar cinco reais. Será que tenho trocado? |