20
ANOS DE SONO E INSÔNIA
Rodrigo Stulzer Lopes
Carlos acordou no meio da noite,
precisava dormir pois amanhã seria um dia muito especial. A
final dos 200 metros rasos da Olimpíada de 2016 era a única
salvação para que o Brasil conseguisse uma medalha de ouro;
ainda mais quando o país estava sediando pela primeira vez os
jogos.
A responsabilidade era muito grande: 250 milhões de Brasileiros
estariam de alguma maneira acompanhando aquela corrida. Seriam os
20 segundos mais longos de toda a sua vida; ele realmente
precisava dormir.
Rola de um lado, rola de outro e os olhos abriam-se como se
tivesse bebido alguns litros de guaraná em pó diluida em água.
Lembrou de uma vez que havia feito isso para estudar. Depois de
uma hora não conseguia mais concentrar-se pois a cabeça passara
do ponto da assimilação. Pensou em dormir mas logo descobriu
que o sono era impossível de alcançar. Ficou cozinhando na cama
quatro horas até finalmente dormir.
Agora não parecia ser muito diferente. Pensou novamente no peso
e na responsabilidade e notou que desta maneira iria passar a
noite em claro. Concentrou-se; realmente necessitava descansar e
começou a relaxar o corpo. Uma técnica que havia desenvolvido
nos seus 24 anos de vida consistia em deitar de barriga para cima
e relaxar totalmente o corpo. O relaxamento ajudava seus
batimentos cardíacos diminuírem mas difícil era liberar sua
mente de qualquer pensamento. Acabou caindo no sono por volta das
cinco horas.
Primmmmmmmmmm, toca o despertador. São 8 horas da manhã.
Carlos acorda com aquele barulho terrível assolando seus
ouvidos, não havia coisa pior no mundo. Tudo o que queria era
poder dormir mais um pouco. Apertou a tecla "soneca" e
voltou a dormir com um leve sorriso.
- Carlos, acorda! - dizia Peixoto, seu técnico - São 10 horas
da manhã e a final é ao meio-dia. Você já está atrasado!
- Hã? O que está acontecendo? - disse Carlos ainda dormindo.
- Carlos! É a final dos 200 metros, cara. Tire esta bunda da
cama e vá tomar um banho!
- Deixa eu dormir, estou com muit... - não conseguindo completar
a frase caiu novamente no sono.
Peixoto começou a desconfiar quando tentou acordá-lo pela
terceira vez e recebeu um travesseiro na cara como resposta.
"Quem sabe é o nervosismo da corrida", pensou já
preocupado.
Saiu rapidamente pelo corredor do Bloco Azul da Vila Olímpica em
direção à enfermaria. No caminho resolveu chamar o médico da
Delegação Olímpica através do seu celular. Corria olhando
para o pequeno visor do aparelho quando apareceu Caetano na
telinha.
- Nossa Peixoto, por que está tudo pulando por aí, algum
terremoto? - disse Caetano vendo o colega todo tremido na tela de
seu telefone.
- Antes fosse; preciso que você venha para cá imediatamente, o
Carlos está dormindo e não tem santo que o faça acordar.
- Nossa, mas a corrida dele não será na hora do almoço?
- Pois é, mas não consegui fazer nada. Estou correndo até a
enfermaria para ver se alguém me ajuda a colocá-lo no chuveiro.
- Tudo bem, estou me arrumando e devo estar aí em no máximo uma
hora. - disse Caetano pegando sua bolsa e correndo para o carro.
Peixoto olha a placa no final do corredor indicando o local da
enfermaria. Entra como um tufão e vê dois jovens de branco
sentados em um sofá, com os pés na pequena mesa central,
assistindo à televisão.
- Rápido pessoal - disse Peixoto já sem fôlego -, preciso de
uma ajuda com o Carlos Limeira. Ele está no quarto e não
consigo fazê-lo acordar.
Os dois enfermeiros entenderam na mesma hora a gravidade da
situação. A TV já estava mostrando os bastidores da final dos
200 metros e o único corredor que ainda não haviam localizado
era o Carlos Limeira (ou Cacá Pé-de-Vento), como era conhecido
pelo Brasil afora.
Os três entraram no quarto e a cena repetia-se. Cacá dormia
como um bebê enquanto o relógio marcava 10:30h. Um dos
enfermeiros tomou o pulso de Carlos enquanto o outro examinava
suas pupilas.
- Nossa, este cara deve estar meditando ou algo muito estranho
aconteceu - disse o enfermeiro mais novo. - Ele está com uma
pulsação de 26 batimentos por minuto, pouquíssimo, mesmo para
um atleta como ele.
- Seus olhos respondem aos estímulos luminosos - disse o outro.
- Já pode-se descartar a possibilidade de qualquer tipo de coma.
- Eu sei que ele fazia relaxamento para dormir - disse Peixoto -,
mas isso é o cúmulo!
Após um rápido debate e uma consulta ao doutor Caetano, ainda
preso no congestionamento, resolveram colocar Carlos no chuveiro.
- Mas lembre-se de iniciar com água morna - disse o médico
Caetano. - A água fria deve vir em seguida, mas de forma branda.
Carregaram-no para o chuveiro deixando a água escorrer por todo
o seu corpo. A medida que foram diminuindo a temperatura da
água, Carlos começou a dar algum sinal que acordaria.
"Estou com muito frio", foram as únicas palavras que
conseguiram ouvir dele. A sua pulsação tinha caído agora para
20 batimentos por minuto. Caetano, ainda com o cabelo despenteado
por ter saído correndo de casa e com seu crachá de médico da
Seleção Olímpica virado de cabeça para baixo, entra
rapidamente no quarto e dirige-se para o banheiro.
- Como está ele? - pergunta rapidamente colocando seu medidor de
pressão digital no pescoço de Carlos.
- Ele só disse que está com muito frio - falou Peixoto com
olhar de preocupado.
- Pudera, seu batimento está muito baixo. Vamos levá-lo de
volta para a cama. Arrumem cobertores dos outros quartos.
Neste momento o corredor já enchia-se de atletas curiosos com o
que não acordava.
Já passava das 11:30 horas quando Peixoto recebeu a notícia;
Carlos estava desclassificado por não ter se apresentado até o
horário limite estipulado pelos juízes.
Enquanto isso uma ambulância já aguardava na portaria do Bloco
Azul. Uma maca levou Cacá Pé-de-Vento até o primeiro andar e
embarcaram-no na ambulância.
No hospital fizeram tomografias, radiografias, contraste dos
ossos e até testes genéticos. Nada encontraram. O único
diagnóstico era que Carlos encontrava-se dormindo, nada além
disso.
Dez anos mais tarde Carlos acordou. Voltou a treinar e conseguiu
o índice Olímpico para participar das Olimpíadas de 2028 em El
Salvador.
Na noite anterior à final dos 200 metros rasos estava muito
preocupado. "E se dormisse novamente sem acordar no dia
seguinte?" Deitou de barriga para cima e concentrou-se.
Gostaria de descansar, mas não pretendia dormir. Passou a noite
em claro, graças ao seu poder de concentração.
Correu a final dos 200 metros rasos sagrando-se campeão e
recebendo a medalha de ouro. Estava eufórico mas não sentia
vontade de dormir. Voltou para o Brasil, passeou em carreata e
recebeu os cumprimentos do Presidente da República.
Passou os próximos 10 anos sem dormir. Tornou-se até objeto de
estudos para os cientistas.
Morreu aos 128 anos ao tropeçar com a pantufa azul-marinho no
canto da cama, batendo a cabeça no despertador. Seu corpo
permanece praticamente inalterado até hoje, 300 anos após sua
morte, mesmo sem ter sido embalsamado. O Papa recebeu pedidos de
canonização de vinte e sete federações das Nações Unidas do
Hemisfério Sul.
Foi ordenado Santo no ano de 2.395 e a ele são atribuídos
milhares de milagres. É o padroeiro dos preguiçosos e dos
insones.
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