TERRAS
PROFUNDAS
Paffomiloff
Jalakirata riu seu riso de criança, e me abraçou por trás. Tudo em nossa volta perdeu a forma, e uma fila de bolhas dançarinas rodopiou o ar, perfilando-se diante de mim.
- Gaspar - pediu ela - pensa uma coisa bonita.
- Meu nome não é Gaspar.
- Mas se eu pedir, será?
Jalakirata me abraçou de novo, e aproximou seus brancos dentes de tubarão do meu ouvido esquerdo, dando-me um beijo tão doce que a bolha à minha frente transformou-se num pote de mel com cheiro de flores.
A criança apanhou avidamente o pote, enquanto as bolhas viravam flores, folhagens e árvores. Um veleiro deslizava por dentro da floresta, e estávamos nele.
- É assim que me sentes, Gaspar? Doce e pegajosa? Acho que adotaste sem saber. Estou feliz. HarSasamanvita!
- Jalakirata, tenho de acordar. Devo ir ao trabalho.
- Mas não o queres. Porque vais?
- Em meu mundo, as coisas não surgem de bolhas, se meu espírito está aqui, meu corpo está lá, e precisa de alimento...
Ela começou a chorar, enquanto o mundo dela imergia numa névoa prateada, ouvia sua voz lamentando: "NirAzraya eu não quero. Fica comigo, Gaspar".
Os lamentos incompreensíveis de "NirAzraya, apAkRR" transformaram-se no autoritário sinal do despertador digital. Olhei para o lado, e senti o cheiro de álcool evaporando-se com o suor de minha mulher, tão próxima quanto inacessível.
A parede explodiu sem barulho, e um imenso peixe de olhos fechados, cujas costas eram formadas de conchas entrelaçadas, veio nadando no ar, montado pelo garoto NabodVajah, o pastor de núvens.
Em movimentos lentos, o imenso peixe foi rasgando as paredes com suas afiadas barbatanas, abrindo um céu azul. Aproximou-se da minha cama, e devorou minha mulher como um aspirador de pó chupa um pedaço de papel. A princípio me assustei, mas percebi que havia entrado novamente no sonho.
- Vem Nakti - chamou o garoto, que me puxou para o dorso do peixe.
- Não me chamo Nakti - queixei-me inutilmente.
NabodVajah aconchegou-se em mim.
- Não gosto da tua mulher, ela te faz sofrer, Nakti. Vi em tuas memórias.
Nadávamos ao longo de imensas nuvens gordas que arrotavam trovões, cumulus nimbos, acho. Fiquei irritado subitamente.
- Vasculhou minha memória? Se podem fazer isso, porque me pedem que lhes dê coisas, que imagine para vocês?
O garoto virou-se para mim com seu olhar franco e preocupado, que desfez minha raiva como o vento dispersa a nuvem.
- O sabor de um presente é melhor que o presente em si. Não tomamos o que não é nosso. Vasculhei sua memória pois nós te amamos muito, Jalakirata e eu.
Fiquei sem palavras, e ele tocou em meus olhos para que eu não chorasse.
- Ei! Homens não fazem esse tipo de papelão, Nakti! - NabodVajah puxou uma máquina de escrever de um alçapão que encontrava-se nas costas do peixe - essa coisa que me deste, não serve para nada.
- NabodVajah, ela ajudava a escrever bonito, com letras compreensíveis, quando eu era criança. Hoje não se usa muito.
- Nakti, não se escreve em sonhos. Não se lê em sonhos. Aqui é MahAsvapna, a terra dos sonhos abertos, estamos longe das terras rasas do Rio Yan, onde os sonhos ainda possuem significados. A verdade se encontra além da ilusão das palavras, e suas escravas, as letras. Aqui neste lugar as coisas não são mais reais, mas pelo menos são francas.
O garoto jogou a máquina para cima, de forma que as nuvens em forma de carneiros a devorassem. Tentei acompanhar o movimento, e escorreguei da concha do peixe.
Acordei novamente, caindo da cama.
Estava atrasado, mas a lentidão do sono retardava meus passos. Iludi-me que a água morna me despertaria, pois faltou-me coragem para a gelada. Sentei-me no chão do box, esfregando o sabão no meu cabelo.
Lentamente, muito lentamente.
Meus gestos eram tão frouxos, que o sabão conquistou sua liberdade.
- Aí estavas, Gaspar! - Jalakirata sentara-se ao meu lado - estás desnudo. Tens vergonha? Queres que me vire, mesmo sabendo que posso ver sem olhar? Que roupas são o medo costurado? Estou feliz aqui contigo: HarSavihvala! HarSavihvala!
- Querem me deixar ir para o trabalho? - implorei.
- Somos órfãos, e estamos sós, NabodVajah e eu. Amamos a ti, e não a outro - puxou um disco de prata liso, que foi crescendo até os limites do banheiro - Vê neste espelho que mostra auras, Gaspar. Verás como és lindo.
Sacudi-me, e quase escorreguei. Cheguei diante da porta e olhei para trás. O espelho sumira e não havia mais ninguém. Enrolei-me no roupão, "Preciso fugir". Ainda de roupão, corri para fora do apartamento, sem pensar no que estava fazendo, quando um imenso peixe de nuvens veio atravessando as paredes, com duas crianças no dorso.
- Venha conosco, NiktoGaspar. É penoso para nós ficar aqui nas terras rasas dos sonhos, onde os significados machucam.
- Vocês não entendem! - eu gritava, correndo. Se os vizinhos me vissem, e fatalmente veriam, talvez entendessem que eu era um sonâmbulo - libertem-me!
- Os sonhos são a liberdade. Svapnadarzana Svapnopabhoga! Svapnadarzana Svapnopabhoga! Se não nos amar, iremos embora.
- Diga que não nos ama - gritou a voz chorosa de Jalakirata - e vamos embora.
- Fale que a matéria te ama mais do que o sonho - NabodVajah não choraria - e te compreenderemos.
- Se não nos amar - complementou a garota - nós o amaremos ainda que separados.
Não poderia mentir para eles. Olhei para trás por um segundo apenas, para ver a névoa se desfazendo no corredor. Tropecei no início da escada, e tudo girou em torno de mim.
* * *
O peixe flutuava sobre o hospital, onde meu corpo jazia, ligado a aparelhos.
- Ela terá uma pensão - sussurrei aliviado, sentindo o calor das duas crianças, aninhadas junto a mim.
- Teu coração é leve, Gaspar. Seus olhos são molhados - sorriu Jalakirata - Nós te amamos.
- Não se preste a esse papelão, Nakti - repreendeu-me NabodVajah - seca teu rosto, para não constranger minhas ovelhas.
Sorri e segui o conselho do garoto. Jalakirata aproximou seus lábios do meu ouvido, e pediu baixinho:
- Imagina uma coisa linda para nós, Gaspar - ela soprou uma bolha no ar.
Um torno de nós, as nuvens se abriram em constelações em formas de flores multicoloridas, enquanto imergíamos para as terras profundas dos sonhos ainda agrestes, onde a imaginação está além dos significados.
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